(Texto de setembro de 2003)
A epopéia humana inicia-se muito antes do aparecimento do primeiro primata. Ela é contemporânea à história terrestre, à formação do planeta em que se dá este maravilhoso e intrigante milagre que é a Vida. Não que o primeiro ser humano tenha aparecido no justo momento em que se formou nosso planeta, aliás, estamos presentes neste há anos quase que insignificantes à história da formação terrestre. Quando proclamada a compatibilidade temporal entre ambos (Planeta Terra e seres humanos) é para dizer que somos as combinações dos átomos lançados à Terra há milhões, bilhões de anos; somos formados por conjuntos de partículas de carbono associadas de formas complexas e mágicas, características não exclusivas dos seres humanos, mas também traços comuns de todos os seres vivos de nosso planeta. Mas o que afinal nos diferencia dos outros tantos conjuntos de carbono em cujos fenômenos do nascimento, desenvolvimento, reprodução e morte ocorrem? Alguma providência divina ou força superior? Algum fortuito natural? Enfim, haveria razão para termos nos diferenciado tanto dos outros seres que apareceram no globo terrestre?
Não é possível, no presente momento, que qualquer homem do mundo responda com inequívoca certeza a tais questionamentos, principalmente porque a ética e o bom senso os impedem de traçar linhas inquestionáveis sobre a origem humana. Mas é fato que, seja pelo motivo que for, seja por acidente natural ou providências divinas, nosso corpo tem características sutis que levaram a espécie humana a dominar a si mesma e entender, mesmo que de forma parca ou equivocada, o ambiente em que vive. A começar pela engenhosa mão humana, com uma das maiores “obras de mecânica” conhecida: o polegar, algo como um “dispositivo” que se opõe aos outros dedos da mão e que, num conjunto articulado, capacitou e possibilitou ao homem a apropriação de toda a natureza, dando respaldo ao desenvolvimento de todo o restante do corpo, que passou a transformar-se de acordo com as novas possibilidades que no horizonte se abriam. O cérebro humano, outra maravilhosa engenhosidade, foi se desenvolvendo a partir daí, para poder perceber e transmitir as novas configurações que se apresentavam, criando então ligações cada vez mais complexas entre suas partes e, por conseqüência, promovendo novas transformações no mundo, desenvolvendo o raciocínio e, em decorrência, as relações humanas. O cérebro humano passou a ser o comandante da estrutura que se formara sob o signo de humano, responsabilizando-se pelo funcionamento deste corpo e configurando suas relações com os outros e o mundo, num eterno movimento de renovação que envolve observação, ação e interatividade, ensinamentos e aprendizagens, acúmulos de conhecimentos que são transmitidos a todas as gerações.
O desenvolvimento humano, pelo menos a priori, serviu para se adquirir uma cada vez maior e melhor apropriação da natureza. As técnicas desenvolvidas, desde a mais primitiva roda até os avançados sistemas informatizados, têm em seu caráter mais puro, ingênuo talvez, a melhor qualidade de vida humana, correlacionada ao conforto, praticidade, produtividade, entre outros tantos possíveis. E há de se reconhecer que o gênero humano conseguiu desenvolver sua tecnologia numa velocidade espantosamente grande, principalmente se comparada com o tempo cronológico que se presumi ter levado para que este mesmo grupo de seres vivos aparecesse no planeta, alcançando resultados de extrema eficiência.
Tal eficiência está relacionada às possibilidades abertas pela intervenção prática-intelectual que a humanidade foi capaz de engendrar. A interrelação entre diversas áreas do conhecimento humano possibilitou um ganho significante no que diz respeito à qualidade e aumento da expectativa de vida, transformando o homem num ser em constante mudança, que se protege não apenas com as possibilidades naturalmente postas, mas também através de sua capacidade de criar novas tecnologias, de perceber seu mundo de forma mais racional e menos instintiva.
Mas eficiência não é sinônimo de consciência, e muito menos se esta consciência for a dita “social”. A consciência humana, tão bem direcionada ao desenvolvimento tecnológico e à apropriação material da natureza, que abriu os limitados olhos dos homens e possibilitou-nos a visão em longa distância como aquela que enxerga os corpos celestes fora de nossa galáxia, ou ainda aquela que nos permite ver as mais ínfimas miudezas, como o interior das células que compõe o corpo humano, fecha os olhos para seus criadores, para sua origem. Nós fomos responsáveis pelo aumento da qualidade e da expectativa de vida humana. Mas de que seres humanos estamos falando? Por acaso são todos? Todos têm acesso à alimentação suficiente e diária, saudável e saborosa? Todos tem acesso à saúde para prevenir possíveis mazelas? Todos podem comunicar-se com pessoas há quilômetros de distância em tempo real? Todos podem falar o que quiser e ouvir o que desejam, optando inclusive pelo total silêncio?
As lembranças da juventude trazem à tona um documentário gaúcho chamado “Ilha das Flores”, que choca pela força de suas imagens. O filme mostra homens que produziam, homens que consumiam, homens que produziam lixo com o que consumiam (ou não consumiam), porcos que se alimentavam daquilo que os homens descartavam e, por fim, homens que se alimentavam daquilo que os porcos rejeitavam. E hoje, vemos que muito pouco (para não ser radical e dizer “nada”) foi inventado para incluir homens. Ao contrário, nossos olhos egoístas e preconceituosos, que nos posicionaram como donos do mundo e não um produto da natureza, fecham-se cada vez mais às fraquezas de nossas próprias criações.
A natureza nos deu as condições necessárias ao desenvolvimento biológico, intelectual e tecnológico, e nós arrancamo-lhe boa parte de sua capacidade de regeneração. Fomos capazes de inventar remédios, intervenções cirúrgicas, vacinas e até substituições, meios utilizados, muitas vezes, para salvar-nos das doenças que também criamos, das armas que inventamos para ferirmos e matarmos outros iguais a nós. Aumentamos nossa produção alimentícia, criamos técnicas, descobrimos o poder e a necessidade dos nutrientes que compõem os alimentos, ao mesmo tempo que demos margem a hábitos alimentares repulsivos ao bom funcionamento orgânico, além da massa excluída do direito de alimentar-se com dignidade e saúde. Somos gênios e medíocres.
Condenar o desenvolvimento é exagero, é negar o quanto somos beneficiados por esta formidável intenta humana. Contudo, devemos nos preocupar com suas conseqüências reprováveis, com o egocentrismo imperante, com a desconsideração inescrupulosa sobre aqueles que foram espoliados das oportunidades de participação no desenvolvimento. Mas, apesar do tom apocalíptico, ainda há esperança. Apesar de jamais ter visto uma sociedade onde todos usufruam dos recursos de forma comum, também não há registros sobre uma adesão consensual à apatia social em todas as camadas da sociedade onde se formou, firmou e reproduziu-se o gênero humano.
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