domingo, 20 de fevereiro de 2011

No início era nada, era ela, era parte. Era felicidade animal plena e realizada. Quase verme puro, inconsciente e solitário. Melhores tempos sem o tempo, de ocupação de um agora não mais espaço. Afogado, amarrado, frágil e ignorante.

Num dia, a caminho da consciência, veio a surra e a primeira certeza de ser ora velho o bastante para já poder partir.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Resposta a uma coluna da VEJA

Meus caros amigos,

Há tempos não entrava em embate contra a Veja, mas existem momentos em que a paciência se esvai... Mediante um artigo muito mal-feito e preconceituoso, expressei-me na página eletrônica da referida revista, contudo acredito que minhas palavras não serão aceitas (afinal a censura é coisa de petista...). Mas, para não deixar meus eleitos substantivos e adjetivos morrerem no esquecimento, resolvi enviá-los a vocês.

Segue, então, abaixo três pequenos textos na ordem:

a) Regras para aprovação de comentários da Veja;

b) Artigo de Reinaldo Azevedo; e

c) Meu comentário.

Caso ele seja aprovado e publicado, aviso-lhes.

Valter R. Campos

Regra Geral

Aprovamos os comentários em que o leitor expressa a sua opinião, ainda que divergente das apresentadas por autores e/ou entrevistados em reportagens, artigos, colunas, vídeos, fotos e demais conteúdos do site de VEJA.

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NA USP, UMA NOITE PARA CELEBRAR O ÓDIO, O PRECONCEITO E A BOÇALIDADE

Marilena Chaui está inquieta!

A dita filósofa está mais assanhada do que lambari na sanga. Não fala mais com a “mídia”, mas seus “atos de protesto” só ganham visibilidade porque a “mídia” fala dela. Folha e Estadão trazem hoje notícia do ato que ela liderou ontem na USP em defesa da candidata do PT à Presidência, Dilma Rousseff. Um ato chamado de “suprapartidário” (pare de rir, leitor, para continuar a ler o texto). Ela já havia feito o mesmo na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Tanto o primeiro como o segundo são ilegais e agridem a Lei Eleitoral. Esquerdista não dá bola para isso. Acredita que não se faz justiça sem afrontar a lei. É uma questão de ideologia, mas também de caráter.

Informa o Estadão:
“O (José) Serra trouxe pela porta da frente o Opus Dei e a TFP (Tradição Família e Propriedade), que foram os grandes feitores da ditadura - essa é um afronta à nossa memória”, disse Marilena. “Estamos votando no futuro deste país e para proposta socialista alcançar o Brasil, a América Latina e a Europa.”

Coitada! Não deve ter tomado o remédio! É tão verdadeira a informação sobre o Opus Dei e a TFP (que não têm absolutamente nada em comum e só podem ser equiparados pela ignorância oceânica do Bozo da Filosofia) quando é verdade que o Brasil caminha para um “futuro socialista”. E que, atenção!, vai contaminar até a Europa!!! Um futuro autoritário pode ser! Socialista já é coisa que beira a insanidade.

Atenção para o que vem agora. A palhaçada de Marilena apela aos tribunais:
Diante dos cerca de 2 mil estudantes ali reunidos, Marilena fez uma advertência: ela conclamou todos a usarem a internet, blogs e redes sociais para alertar para o plano dos tucanos de se disfarçarem de petistas e incitarem a violência em um comício de Serra, no dia 29. “Tucanos disfarçados com camisetas e bandeiras do PT vão se infiltrar em um comício do Serra para “tirar sangue” e “culpar o PT”, afirmou a filósofa, que se recusou a dar entrevista, dizendo que “não fala com a mídia”. “Eles querem reeditar o caso Abílio Diniz”, disse Marilena, referindo-se à tentativa de ligar ao PT o sequestro do empresário Abílio Diniz, às vésperas da eleição de 1989.

Nesse caso, Marilena partiu para a delinqüência política escancarada, sem limites. Ao fazer tais afirmações, esta senhora inocenta de saída eventuais provocadores, pouco importa quem sejam eles. Assim, ainda que alguns vagabundos decidam realmente optar pela agressão no dia 29, ela já tem identificados os culpados: são as vítimas.

Não é possível que esta senhora esteja em seu juízo normal! Outros professores participaram do ato, entre eles Vladimir Safatle, que escreve semanalmente na Folha sobre… eleições!!! Já sei: um ato “suprapartidário” abriga isentos, né?Afirmou o rapaz:
“Precisamos evitar o pior: um candidato que para conseguir chegar ao segundo turno fez uma aliança com a ala mais reacionária da Igreja, o agronegócio e a fina flor do pensamento conservador - ou seja, o que o Brasil tem de pior. Esta eleição demonstrou que há um eleitorado de direita forte e presente, nossa luta vai ser longa.”

Esse Safatle é conhecido deste blog. É aquele que identificou e isolou os“sujeitos não-substanciais que tendem a se manifestar como pura potência disruptiva e negativa”. Ele não estava falando de gases intestinais, o famoso “pum”; referia-se aos terroristas. Para esse valente, a nova institucionalidade tem de aprender a lidar com eles. Entendi: por isso está com Dilma… Também foi o propagador, devidamente contestado aqui, da mentira de que a Polícia Militar invadiu a USP com metralhadoras. Para Safatle, uma democracia verdadeira se dá sem eleitores de direita, entenderam?

Celso Bandeira de Mello, dito jurista, desceu a ladeira da indignidade:
“Dilma é uma mulher de valor, que, ao contrário daquele que prega a liberdade de expressão, não foi se refugiar no exterior, enfrentou aqui as durezas da tortura. Esta última semana é crucial. Temos visto as baixezas dessa campanha vil e indigna, sabemos que alguns veículos de comunicação, se é que merecem esse nome, vão rosnar e destilar ódio e acalentar a fabricação de mentiras contra a candidatura que representa o povo brasileiro.”
Bandeira de Mello atacou, assim, todos os brasileiros que tiveram de se exilar durante o regime militar. E depois afirma que os outros é que “rosnam”. Por que esse valente não diz qual foi a mentira publicada contra Dilma Rousseff?

Houve outros ataques rancorosos à imprensa — na verdade, à liberdade de imprensa. Esse é, na verdade, o projeto nº 1 do PT, que o partido já tenta emplacar nos estados. Segundo o Estadão, havia 2 mil estudantes por lá. A universidade tem de mais de 80 mil — logo, aplaudiram as manifestações escancaradas de ódio não mais do que 2,5% dos estudantes. E mesmo esse número precisa ser relativizado. Essas manifestações costumam atrair pessoas que não têm qualquer vínculo com a instituição. Já houve “assembléias” de grevistas engrossadas por militantes dos MST, dos sem-teto e dos sem-juízo de maneira geral.

Acho que o PSDB tem de chamar Chaui às falas. Ela tem de dar detalhes daquele plano mirabolantes. Afinal, não se trata de algo trivial, não é mesmo? Ou bem ela está denunciando um crime ou bem está cometendo um crime. Como ela é petista, eu tenho a minha hipótese.

Por Reinaldo Azevedo

Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/na-usp-uma-noite-para-celebrar-o-odio-o-preconceito-e-a-bocalidade/ (Acessado em 27/10/2010)

Meu caro,

Sinto dizer mas, na condição de professor que me é cara, aconselho-te a procurar imediatamente auxílio no que diz respeito a elaboração de texto e análise de discursos. Um pouco de ética e boa educação também trariam bons resultados à qualidade de sua retórica.

Além disso, deixando de lado as tentativas frustradas de ironia que aqui não as quero repetir, seria bom um aprofundamento a respeito das organizações políticas e religiosas presentes neste nosso país. TFP e Opus Dei nada têm em comum? Claro, lembro-me quando me visitaram os representantes daquela exibindo suas correntes prateadas, com uma cruz envolta por um círculo, e acusando os comunistas (entenda o termo como quiser) de vender placenta humana aos fabricantes de cosmético. É bom sempre lembrar disso, me renova o ânimo para continuar participando criticamente dos processos políticos da nação em franca campanha contra posicionamentos tão conservadores e que apelam para a mentira e o baixíssimo nível argumentativo (para não citar o ético) como estratégias de convencimento.

Voltando àquilo que me propus no início, qual seja falar sobre a qualidade do texto aqui apresentado, gostaria de chamar especial atenção para o parágrafo que inicia-se assim: "Houve outros ataques rancorosos à imprensa — na verdade, à liberdade de imprensa." Quando o li, pensei que você nos traria algo que desenvolvesse este tema, para mim de singular importância - imagine, por exemplo, os censores de outrora lendo esta pequena apreciação que aqui faço! Contudo, o que se mostrou foi uma vertiginosa mudança de tema, passando a analisar mal e porcamente alguns dados numéricos. Que confusão, não? Será que algum estudante que estava ali presente teria sido aprovado em tão selecionada universidade se empreendesse um texto argumentativo da mesma forma? Para melhor exemplificar, vou expor a linha "evolutiva" dos temas: LIBERDADE DE IMPRENSA - QTDE. DE ESTUDANTES PRESENTES - MST.

Além disso, a presença dos estudantes em sua totalidade seria fisicamente impossível, seja pelo horário (nem todos estão na universidade para o curso noturno), pelo espaço (que não comportaria tal quantidade de pessoas), seja por outros compromissos - eu, por exemplo, estava em aula... e não pense em dizer que bons alunos estavam em aula enquanto vagabundos apoiavam a honrosa filósofa, já lhe disse que não é assim que se contrói argumentos.

Ao fim, vou me dar ao luxo de discordar de sua conclusão. Não acho que o PSDB deva chamar Chauí para cobrar-lhe explicações, mesmo porque um partido político não tem o poder de julgar as pessoas - salvo engano, já temos instituições públicas que para isso são mantidas. Acho sim que os tucanos deveriam ser corajosos o bastante para organizar ato semelhante junto a alguns dos futuros intelectuais do país. Mas, como eles são tucanos, eu tenho minha hipótese.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Murilo Mendes em suas próprias constelações


convicto de que acima das igrejas, dos partidos, das fronteiras, todos os homens conscientes, em particular os escritores, devem unir-se contra a guerra, a massificação e a bomba atômica.

Roma, 14-2-1970

Murilo Mendes



O poeta escreverá, portanto, para manifestar suas constelações próprias.

Murilo Mendes




Partindo do pressuposto de que ler a obra de um autor é perceber a sua mitologia própria, constituída por suas imagens, estilos, etc., busca-se neste brevíssimo ensaio perceber como as constelações murilianas se fazem presentes em sua poética. Assim, através do contato entre os escritos críticos do autor, somados a apreciações críticas oriundas de estudos acadêmicos, pretende-se perceber como tal poeta entende o seu fazer poético e como este se concretiza dentro de sua criação – a saber, usaremos aqui o poema Choques para tal constatação.



Para analisar a obra de Murilo Mendes, não nos cabe uma abordagem tradicional em que a formalidade técnica esteja latente e aparente. A obra deste poeta nos transporta a uma realidade não imediata, nos obriga a sair de uma possível zona de conforto propiciada pelas tradições literárias a ele anteriores, e nos lança, ao menos inicialmente, ao objetivo de perceber a “própria articulação da linguagem poética” (Candido, p.81). O próprio autor reconhece este movimento como caro à sua obra conceituando o fazer literário não como um fim em si (a arte pela arte), mas sobretudo como um meio de comunicação escrita, uma técnica de comunicação. É também através desta percepção que chegamos a uma configuração da persona do poeta, sua configuração pessoal, inegavelmente presente e aparente em seus escritos artísticos e que, por refletir um homem imerso em um mundo específico, em um momento histórico específico, está intrinsecamente envolvida num todo social que lhe é contemporâneo.

Logo, levando-se em consideração o objeto aqui analisado – qual seja o poema Choques –, é necessário contextualizar o momento de sua produção e publicação. Este poema consta do livro Poesia e Liberdade, reunião de escritos produzidos entre 1943 e 1945 (publicados em 1947), período conturbado em âmbito nacional (sob a égide da ditadura do Estado Novo) e, principalmente, em nível internacional, com a presença nada imperceptível dos horrores causados pela II Guerra Mundial. Já este ponto nos esclarece a matéria central do poema analisado, a qual nos revela um poeta dialogando com sua contemporaneidade e delatando os choques provocados pela situação bélica instituida, notoriamente clara nos usos de temos como aviões de bombardeio ou ditador sentado na metralhadora.

Contudo o diálogo de Murilo Mendes com seu tempo não se dá apenas na matéria do poema, mas sobretudo em sua atitude frente o fazer poético. Bebendo nas fontes da vanguarda artística típica do modernismo, o poeta busca


a aproximação de elementos contrários, a aliança dos extremos, (...) o poema como um agente capaz de manifestar dialeticamente essa conciliação, produzindo choques pelo contato da ideia e do objeto díspares, do raro e do quotidiano etc. (MENDES, p.178).


É assim, por exemplo, na criação de imagens como a tempestade calcula ou armário que, inalterável, rumina. Este tipo de construção de imagem é bastante comum em produções que se pautam no surrealismo. É desta corrente artística que ele absorve procedimentos de colagem (montagem), notoriamente combinatórios, junção de imagens muito distantes para formar uma terceira, o encontro fortuito entre um guarda-chuva e uma máquina de escrever sobre uma mesa de dissecação de cadáveres. O artista, então, é compreendido como um centro de relações, o agente unificador entre imagens distantes.

Mas é também necessário levar em consideração a condição cristã do poeta convertido à fé católica. Longe de cega ou dogmática, sua cristianidade se revela na construção de uma poética que aponta para a transcendência. É no mínimo curiosa a somatória de catolicismo com surrealismo, pontos diametralmente distantes. Contudo, por um lado esta soma aponta para aquela aproximação inusitada anteriormente dita. E, por mais contraditória que possa parecer, podemos aliviar esta tensão percebendo que, de um lado, o surrealismo prega a transformação do mundo e, de outro, o catolicismo revela a vontade de transcendência. Assim, o autor aponta para um desacerto do mundo (sobretudo neste momento em que se depara com um ambiente de guerra) e, a partir da união insólita de imagens distantes, busca a comunhão do homem profanado por tal situação. A visão religiosa de Murilo Mendes prevê a humanidade como um corpo único cuja a cabeça é Cristo; logo, a guerra que coloca homens contra homens, separando-os de sua totalidade, é a profanação do todo divino. Em última instância, a dimensão cristã é o que faz com que o poeta afirme “que a poesia deve propor não só um conhecimento, mas ainda uma transfiguração da condição humana, elevando-nos a um plano espiritual” (Ibidem9, p.179). É exatamente este o movimento perceptível ao final do poema, com a pomba mirando a liberdade do horizonte.

Tendo posto estes preliminares apontamentos acerca da poética muriliana, olhemos mais atentamente para o poema para que seja possível melhor visualizá-la e, a medida do possível, ampliá-la.

Desde o título, o poema parece propor uma tensão violenta entre situações contrárias. O choque é dado sempre entre imagens de âmbito positivo (seja por conta da religiosidade ou do poder de transformação que carregam em seu âmago) e outras de mote negativo (seja pela passividade, seja pela situação de guerra). Acredita-se que esta tensão deve ser necessariamente violenta porque, em primeiro lugar, revela a configuração mundial em um estado bélico e, em segundo plano, aponta para a tendência político-ideológica que se apresentava como alternativa ao status quo, qual seja a transformação social através da implantação do sistema socialista1. Tem-se, então, nos primeiros dois versos, o choque violento entre os pensamentos furiosos, provavelmente provocados por uma discordância em relação à guerra, e a atitude em nada ativa dos outros que permanecem sem expressar-se física ou verbalmente frente a tal situação. Sucede-se a tais versos a tensão entre a religiosidade e a guerra (O choque dos cerimoniais antigos / Com a velocidade dos aviões), a transformação social proposta pelos ideiais socialistas (O choque da foice contra o cristal dos milionários) e, por fim, a não presença de boas notícias em relação ao silêncio das cidades abandonadas (O choque das roseiras emigrantes com o silêncio das linhas retas), completando assim o que aqui chamamos de primeiro momento do poema.

Antes de passar para a análise da segunda parte, chama a atenção o uso e construção da imagem “roseiras emigrantes”. Acredita-se que a análise isolada de tal composição seria suficiente, mas ao perceber sua recorrência, tem-se em mãos um instrumento para melhor compreensão desta mitologia muriliana. Em livro anterior, pode-se ler a seguinte passagem:


(...)

Acompanhado pelas rosas migradoras

Apascento os planos que gritam

E transmitem o antigo clamor do homem


Que reclamando a contemplação

Sonha e provoca a harmonia

(...)

Comunica-se com os deuses.2


Neste trecho, as rosas, imagem recorrente para fazer menção aos ideais socialistas (A rosa do povo, a primavera dos povos, etc.), migram junto ao eu-lírico levando o grito que harmoniza a humanidade (a reconstrói como um corpo único e divino), o grito que transmite a vontade de comunhão humana e o faz entrar em contato com a transcendência. Esta mesma rosa, em Choque, posta em seu coletivo, não mais exerce seu movimento ao encontro do ser humano, mas está emigrando, saindo do espaço de enunciação do poema; ela deixa o local que agora está vazio de vozes, silenciado. Diria, o próprio autor, que “o adjetivo, (...) empregado com justeza recria o substantivo, e longe de se tornar um apêndice supérfluo, em muitos casos faz um bloco só com ele” (Ibidem, p. 178). É exatamente este preceito que pode ser aqui apreciado. Rosas migradoras, roseiras emigrantes. De um lado, o movimento ao encontro do homem para ajudar-lhe a vociferar suas ânsias; de outro, fuga ao homem, evitando seus silêncios por falta de esperança ou comunhão.

Já na segunda parte, as associações são mais surrealistas e causam tanto estranhamento quanto dificuldade de interpretação. É o momento em que se reforçam os apontamentos de Candido a respeito da necessidade maior de busca da articulação da linguagem poética quando defronte a um “poema livre”. Assim, o jogo entre claro/escuro, luz/sombra, movimento/passividade, trancendentalismo/imediatismo e coletivo/indivíduo demonstram, de uma maneira mais surrealista, o mesmo movimento da primeira parte, o choque violento entre os pólos positivos e negativos. Estes casos dão-se, respectivamente, pelas construções de imagens como tempestade x lúcido farol, águias arredando a noite x armário que, inalterável, rumina, tempo x altar da eternidade e, por fim, multidão sacrificada x ditador sentado na metralhadora. Observa-se, então, uma reiteração da poética muriliana, com o autor fazendo-se centro de relações que une tão diferentes imagens para a construção dialética de uma terceira imagem combinatória.

O mesmo artifício poético é utilizado no encerramento do poema (Choca-se a guilhotina erguida pelo erro dos séculos / Com a pomba mirando a liberdade do horizonte), contudo, percebe-se um outro aspecto da poética de Murilo Mendes já citado no início do ensaio. Este aspecto diz respeito à posição do poeta quanto à função da poesia, qual seja a ideia de que ela deve cumprir um fim maior, a transfiguração da condição humana. Assim, em conjunção com seus preceitos católico-cristãos, o poeta usa a pomba (imagem ambígua por poder representar tanto a paz quanto o Espírito Santo – uma das três pessoas da Santíssima Trindade) para mostrar a direção em que está a esperança. Num futuro? Sim. Mas um futuro necessariamente ligado à transcendência, o homem no seu reencontro com o criador numa possível vida além da terrena.

Desconsiderando a petulância em querer dar conta de uma poética tão complexa em tão poucas linhas (questão que nem mesmo toda a fortuna crítica a respeito do autor conseguiu englobar em sua plenitude), espera-se ter demonstrado aqui como é que a mitologia pessoal de cada autor é capaz de ajudar o leitor na compreensão de uma obra poética. Centro de relações, aproximações inusitadas, transcendentalismo cristão e tantos outros pontos que poderiam denotar incoerência linguística, conceitual ou estética, aqui se mostraram como estrelas que compõem as constelações de genialidade de Murilo Mendes.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CANDIDO, Antonio. “Pastor pianista/pianista pastor”. In. Na sala de aula: caderno de análise literária. São Paulo: Ática. (p.81-95).

MENDES, Murilo. “A poesia e o nosso tempo”. In. CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira. Vol. III. Modernismo. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1975 (p. 176-181).

­­_______________. “Choques”. In. Poesia e liberdade. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001. (p.99)

MERQUIOR, José Guilherme. “À beira do antinunivverso debruçado”. In. Murilo Mendes: antologia poética. Brasília: Fontana. (p.11-22).


1 É necessário lembrar que, em Marx, a tomada do poder por parte do proletariado é necessariamente uma atitude violenta – o que, para este ensaio, não pode ser entendido como algo negativo, uma vez que é parte da ideologia adotada pelo prórpio autor.

2 O pastor pianista. In. Visionário.

O bibliotecário

Tal fue la primera intrución del mundo fantástico en el mundo real

(Tlön, Uqbar, Orbis Tertius)


I.


Um jovem1 busca escrever um ensaio sobre um escritor de ensaios sobre literatura. Tarefa árdua a que se dedica com afinco, suor e dúvidas, muitas dúvidas. A intenção é um estudo comparativo sobre, a princípio, duas obras2 de um determinado autor – que por hora daremos o nome hipotético de Borges –, para o qual já lhe foi imposta a dificuldade de não se tratarem estes textos elegidos de ensaios sobre teoria literária, senão contos fantásticos3. Por sorte – pelo menos foi esta a sua impressão – ou artifício da bibliotecária que lhe orienta em Babel4, a primeira cifra aparente lhe foi dada pela espiral da nota de rodapé de Ficções, ligadura introdutória ao Livro de areia.


Letizia Álvarez de Toedo ha observado que la vasta Biblioteca es inútil; en rigor, bastaría un solo volumen, de formato común, impreso en cuerpo nueve o en cuerpo diez, que constara de un número infinito de hojas infinitamente delgadas (…) El manejo de ese vademecum sedoso no sería cómodo: cada hoja aparente se desdoblaría en otras análogas; la inconcebible hoja central no tendría revés.

Mas o cíclico movimento do universo – se é que seja um movimento propriamente dito – lançou-lhe noutra espiralada escada que ligava um andar a outro de sua própria biblioteca – que pouco se diferencia de todas as outras bibliotecas e que, por extensão, nada mais é que um outro hexágono da Biblioteca – e, de volta ao princípio, emperrou-o na dúvida. Estava então e agora perdido naquele lugar à direita de um pátio, em que o autor, aproveitando-se do descuido dos funcionários, largou seu próprio livro de autoria alheia “numa das úmidas prateleiras”.

Confuso dentro deste labirinto, buscou de livro em livro um alívio que pudera ser imediato, sem perceber que era esse imediatismo temporal o que lhe atrapalhava. Pensava em sequências quando devia pensar em percepções e saber que tudo aquilo que lá existia, até mesmo o que existia fora de lá, só era possível através de sua própria percepção. Não se via como o próprio autor, que é um único e todos ao mesmo tempo – o tempo da leitura5; e não se percebia diante de um espelho do mundo.



II.

A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão a ponto de dizer algo; essa iminência de uma revelação que não se produz é, quem sabe, o fato estético

(In. A muralha e os livros)


Já tinha se percebido num labirinto e que a saída deste dependeria apenas de si mesmo como leitor. Assim, percorreu a biblioteca com a sua própria biblioteca na cabeça, buscando explicações a partir daquilo que grandes lhe sopraram ao ouvido ou projetaram em seus óculos. Pensou um pouco e analisou o local: uma biblioteca com andares hexagonais. Guardou a informação em algum canto da memória. Outras referências: lembrava-se de terminologias (weltiliteratur, literatura comparada, mise en abyme6, literatura fantástica, etc.) e nomes (Arrigucci, Olmos, Cervantes, Hume, Berkeley, Jauss, etc.). Procurou por esses para lhes solicitar apoio. Deu-se, então, o (re)início dos conflitos.

Iniciado pela noção de mise en abyme, lembrava-se de que esta pressupunha a introdução de uma obra de arte dentro de outra obra de arte, como na percepção de uma criança diante uma lata de biscoitos que traz ilustrada em seu rótulo uma lata de biscoito, abrindo uma sequência de repetições desta mesma figura com projeção ao infinito. Não era necessariamente uma novidade, pois já havia percebido esta dinâmica em Withman e Balzac, os quais se prestaram a narrativas (notoriamente produções artísticas) que contavam sobre outras produções artísticas. Ainda assim, não era necessariamente o que havia em suas mãos, uma vez que aqueles lhes mostravam a literatura discutindo as artes plásticas ou a música. O que possuía era a literatura discorrendo sobre si mesma, sobre sua feitura. E teve sua primeira epifania: “Al procedimento pictórico de insertar un cuadro en un cuadro, corresponde en las letras a de interpolar una ficción en otra ficción.”(BORGES, 2007, p.532).

Olhou ao redor seu redor... Recompôs-se e continuou...

A noção vertiginosa desta repetição ao infinito o fez abrir o leque de possibilidades de sua manifestação. Em primeiro lugar, uma relação estreita entre escritor, personagem e leitor – a qual lhe pareceu que deveria ter sido percebida quando posto frente ao Cervantes que julga e critica Cervantes em Don Quijote. “Tais inversões sugerem que, se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios”. (BORGES, 2007, p.65).

Depois, uma extensão do conceito que apontava para a interpretação daquele lugar como metáfora para o mundo, um espelhamento deste. Assim, apoiado pela voz de outros tantos, pode ver que

O mundo, segundo Mallarmé, existe para um livro; segundo Bloy, somos versículos ou palavras ou letras de um livro mágico, e esse livro incessante é a única coisa que há no mundo: melhor dizendo, é o mundo. (BORGES, 2007, p.136)

A junção de ambas as noções lhe custou mais trabalho, contudo pode perceber a Biblioteca como uma metáfora para o próprio mundo. A diferença entre mundo e ficção seria muito estreita. Na verdade, as explicações sobre o mundo, sua origem e materialidade, nada mais são do que enredos fantásticos de um livro único e infinito, tão eterno quanto a areia. Livro este escrito por todos os escritores – não há um autor especificamente, tudo faz parte de um mesmo conto, romance, poesia... uma mesma literatura feita por um escritor/entidade, somatória de todos escritores (passados, presentes e futuros).


III.

¿Cuál de los dos escribe este poema

de un yo plural y de una sola sombra?

¿Qué importa la palabra que me nombra

si es indiviso y uno el anatema?

(In. Poema de los dones)


– Então a Biblioteca é formada por todos os homens e estes são os escritores?

– Que bom que te questionas, meu caro. Atitude cara à literatura fantástica, já que retoma gregos de outrora. Ainda que uma resposta exata não seja simples, talvez impossível, tentemos aclarar a escuridão. Já sabemos que a Biblioteca nada mais é que uma metáfora para o mundo. Correto?

– Sim.

– Pois bem, ela só existe a partir daquilo que percebemos como Biblioteca e é também por isso que ela pode ser identificada dentro daquela metáfora. Assim, só podemos entender as coisas do mundo quando as percebemos. “A maçã não pode ter gosto por si mesma – nem na boca de quem come. É preciso um contato entre elas.” (BORGES, 2007, p.12).

– Exatamente.

“O mesmo acontece com um livro ou com uma coleção deles, uma biblioteca. Pois o que é um livro em si mesmo? Um livro é um objeto físico num mundo de objetos físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então aparece o leitor certo, e as palavras – ou antes, a poesia por trás das palavras, pois as próprias palavras são meros símbolos – saltam para a vida, e temos uma ressurreição da palavra” (op. cit).

– Então a literatura não é produto de escritores?

– A literatura nada mais é que a arte produzida pelo leitor, só existe na materialidade que o leitor lhe dá. Sem leitor, é um objeto morto no espaço. Com o leitor, ela se realiza, vive, e é recriada segundo suas experiências e vontades. A literatura não é arte da escritura, mas sim a arte da leitura.


IV.

O outro me sonhou, mas não me sonhou rigorosamente. Sonhou, agora o entendo, a impossível data no dólar

(In. O outro)


Eis uma previsão:

Não tardará o dia em que nosso bibliotecário acordará e perceberá que tudo foi um sonho. Melhor, é provável que desperte e não saiba se sino douto ou lepdóptero. Em dúvida, talvez perceba que fora criado por seus precursores e que também os criou através da bicicleta dos seus óculos. E, se diante disso, terá sua vista dilatada e compreenderá a weltliteratur não como um compêndio de fulano que leu cicrano, mas como um real contato entre as diversas culturas, artes, sua própria arte e filosofia.


As invenções da filosofia não são menos fantásticas que as da arte”




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ARRIGUCCI JR, D. “Borges ou do conto filosófico”. In: Outros achados e perdidos. São Paulo, Companhia das letras, 1999.

BORGES, J.L. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

__________. Ficciones. Madrid: Alianza Editorial, 2009.

__________. O fazedor. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

__________. O livro de areia. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

__________. Outras inquisições. Tradução de Davi Arrigucci Jr.. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

OLMOS, A.C. “Um retrato do artista” e “Um ensaio de leitura: o livro infinito” In: Por que ler Borges. São Paulo, Globo, 2005.





1Porque o termo jovem não perdura numa biblioteca de forma imutável.

2E ainda mal sabe o pobre coitado que comparará uma mesma obra, ainda que busque a ilusão da existência de outros autores no universo.

3Novamente, um pobre coitado inocente.

4Nem sempre os bibliotecários de Babel são fáceis de ser encontrados ou identificados. Houve um para o qual criaram um culto por conhecer o exemplar fundamental de todo conhecimento, mas não há provas suficientes sobre sua existência, tampouco do livro que teria lido e escondido em um dos tantos hexágonos da Biblioteca.

5Todos los hombres, en el vertiginoso instante del coito, son el mismo hombre. Todos los hombres que repiten una línea de Shakespeare, son William Shakespeare”.

6Para qual preferiu mais tarde “ficcíon en outra ficción”.