quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

EL ÁRBOL, CONTO EM PRIMEIRA PESSOA

(Uma leitura feita sobre o conto El árbol, de Maria Teresa Bomball)

O narrador é a voz que fala dentro da obra literária, uma espécie de contador da história que, dependendo dos fatores que o circunda, exerce maior ou menor influência no todo do texto. Leite (1997, p.25-70) nos dá uma boa compilação da tipologia de Norman Friedman, indicando-nos as várias facetas que o crítico identificou sob o signo “narrador” dentro da produção literária. É através desse referencial teórico que o conto El árbol, de Maria Luísa Bomball é analisado neste trabalho, o que não significa dizer que se apresenta aqui uma simples identificação entre teoria e prática, ao contrário, o que se pretende é realizar uma observação crítica tanto sobre presença do narrador no conto estudado, bem como sobre a dificuldade em defini-lo simplesmente pela aplicação de determinada teoria.

O primeiro contato com o texto pode deixar uma falsa impressão de que se está frente a um narrador do tipo onisciente intruso, ou seja, um narrador que “tem a liberdade de narrar à vontade, de colocar-se acima (...), adotando um ponto de vista divino (...) para além dos limites do tempo e do espaço.” (Ibidem, p.27). É, por definição, um narrador que tem acesso a todas as informações sobre as personagens, tem acesso aos seus pensamentos e vontades, narrando predominantemente em terceira pessoa. Caracteriza-se, também, por usar suas próprias impressões e palavras durante o texto, tecendo “comentário sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados com a história narrada” (Ibidem, p.27). Esta impressão aparece logo no início do texto, no primeiro parágrafo, momento em que esse narrador descreve o ambiente inicial do conto:

El pianista se sienta, tose por prejuicio y se concentra un instante. Las luces en racimo que alumbran la sala declinan lentamente hasta detenerse en un resplandor mortecino de brasa, al tiempo que una frase musical comienza a subir en el silencio, a desenvolverse, clara, estrecha y juiciosamente caprichosa.

Contudo, o parágrafo seguinte já põe em xeque tal consideração, uma vez que apresenta o narrador dando voz à protagonista do conto. Ele, ao invés de usar suas palavras e comentar o que pensa a personagem, apenas faz com que a voz do pensamento de Brígida seja ouvida pelo leitor, deixando claro que o pensamento não lhe pertence através do uso das aspas:

“Mozart, tal vez” – piensa Brígida. Como de costumbre se há olvidado de pedir el programa. “Mozart, tal vez, o Scarlatti...” ¡Sabía tan poca música!

Apesar do comentário sobre o conhecimento musical da personagem, é nítido que este não é parte de uma crítica pessoal do narrador, e sim a confirmação do pensamento da protagonista. Em outras palavras, ao invés de julgá-la, o narrador atesta o que a personagem acredita sobre si mesma, confirma que é a própria protagonista que acredita não conhecer muito sobre música. Além disso, no decorrer do conto ele demonstra não ter uma presença divina sobre os fatos, ao contrário, apesar de se posicionar em alguns pontos e refletir sobre a situação, o narrador, assim como o leitor, parece descobrir ao poucos o desfecho da obra, perdendo, de certa forma, seu poder sobre o desenvolvimento do conto.

Seria possível, então, identificá-lo como um narrador onisciente neutro, que tem uma definição bastante próxima ao anterior, diferenciando-se daquele basicamente pela “ausência de intrusões e comentários gerais ou mesmo sobre o comportamento das personagens, embora a sua presença, itrepondo-se entre o leitor e a história, seja sempre muito clara.” (Ibidem, p.32). Trechos que possam servir como argumento favorável a esta perspectiva abundam no conto. Até mesmo os trechos citados acima poderiam ser reutilizados como exemplos comprobatórios dessa hipótese. Contudo, o poder divino que ainda é parte da definição de ambos os tipos de narradores citados, não se comprova em outras partes. Ora, este poder divino, este olhar de cima, é o responsável pela onipresença desses arquétipos, e como concordar com essa onipresença frente a trechos como este:

Fue entonces cuando alguien o algo golpeó en los cristales de la ventana.

Había corrido, no supo cómo ni con qué insólita valentía, hacia la ventana. La había abierto. Era el árbol, el gomero que un gran soplo de viento agitaba, el que golpeaba con sus ramas los vidrios, el que la requería desde afuera como para que lo viera retorcerse hecho una impetuosa llamarada negra bajo el cielo encendido de aquella noche de verano.

Ora, ao que parece, o narrador só tem acesso às informações através do olhar da protagonista. Antes, pairava a dúvida sobre quem golpeava os vidros da janela, tanto por parte do narrador como da personagem e do leitor. Esta dúvida só é sanada depois que a personagem, através de sua coragem, abre a janela e encontra o gomero. Aliás, com exceção dos acontecimentos que ocorrem no presente (ambientados na sala de concerto), o desenrolar da trama só é sabido pelo narrador filtrado pelo olhar da protagonista, por suas lembranças do passado, por suas ações e reflexões.

Como a narração é feita em terceira pessoa (o que afasta a possibilidade de um narrador-protagonista, ou seja, de ser a personagem principal quem narra a história) e o conto é todo filtrado pelo olhar da protagonista, chega-se à hipótese de se tratar de um narrador do tipo onisciência seletiva, o qual se define como a perda do alguém que fala. “Não há propriamente narrador. A história vem diretamente, através da mente das personagens, das impressões que fatos e pessoas deixam nelas (...) Difere da onisciência neutra porque agora o autor traduz os pensamentos, percepções e sentimentos, filtrados pela mente das personagens” (Ibidem, p. 47). Na verdade, esta também é a definição do narrador do tipo onisciência seletiva múltipla, que só se diferencia daquele porque o primeiro utiliza-se apenas uma personagem, enquanto que no último há a presença de vários personagens utilizados da mesma forma.

Ainda assim não há como utilizar a tipologia de Friedman como mera aplicação de uma ferramenta. Ora, a linha fronteiriça entre um e outro tipo de narrador é bastante tênue, e suas definições não dão conta de responder a todas as indagações feitas acerca do conto de Bombal. Ora, como explicar os pequenos comentários do narrador, por exemplo? Ou suas digressões a respeito da própria protagonista, de quem utiliza a percepção para narrar a história? É daqui que nasce mais uma hipótese que tende a confirmar a maestria literária operada pela autora neste conto.

Levine (1984, p.327-328) mostra que o espelho é uma metáfora recorrente na produção literária feminina. Este espelho revela a mulher na busca da sua identidade, a qual é sempre balizada pelo olhar do outro. É a mulher buscando o seu próprio outro, a sua imagem, buscando entender como o outro a vê, um outro quase sempre marcado como superior ou mais evoluído. A autora ainda amplia esta noção fazendo um paralelo entre a utilização do espelho por personagens femininos e masculinos. Em suas palavras:

(...) para la mujer en un sistema tradicional, “el silencio es total... son prisioneras de los espejos” como afirma Monique Wittig. Para el hombre (hombre y humanidad siendo sinónimas en el uso coloquial) la inmersión en el espejo lleva a la auto-concientización, la soledad, la muerte narcisista, pero también implica la búsqueda del Otro, el intento por encontrar el próprio Yo (Ibidem, p.330-331).

O narrador em El árbol parece compartilhar muito intimamente das lembranças de Brígida, numa aproximação tamanha que, muitas vezes, confunde o leitor a respeito do dono daquela voz. Ao que parece, muitas vezes, o narrador nada mais é que o próprio Outro de Brígida, observando e refletindo sobre suas lembranças juvenis.

Primeiramente, é necessário demonstrar que é bem possível que o narrador seja uma voz feminina. No trecho a seguir, pode-se perceber que esta voz se coloca fora do grupo dos homens:

Tal vez la vida consistía para los hombres en una serie de costumbres consentidas y continuas. Si alguna llegaba a quebrarse, probablemente se producía el desbarajuste, el fracaso. Y los hombres empezaban entonces a errar por las calles de la ciudad, a sentarse en los bancos de las plazas, cada día peor vestidos y con la barba más crecida.

Olhando o trecho mais de perto, percebe-se que na primeira vez em que usa “los hombres” em terceira pessoa, esta voz narrativa se distancia deste grupo, mas ainda não se nega como parte dele. No entanto, na segunda ocorrência, a sua não identificação com esse grupo é quase que inegável. Ela aponta os resultados de um fracasso social como sendo algo exterior à ela. Se ela fracassar socialmente, não obterá o mesmo resultado que o deste grupo. Nitidamente, pelo uso da terceira pessoa, ela se posiciona fora do grupo. Esse indício, por mais que não prove a identidade da voz narrativa com a da protagonista, ao menos as aproxima.

A aproximação entre ambas identidades se faz mais forte ao se analisar dois pontos distintos. Num primeiro momento, pode-se observar que, mormente, as dúvidas e reflexões tanto da protagonista quanto da narradora[1] são muito próximas, quase as mesmas. Em vários trechos isso é perceptível.

¡Que agradable es ser ignorante! ¡No saber exactamente quién fue Mozart; desconocer sus orígenes, sus influencias, las particularidades de su técnica! Dejarse solamente llebar por él de la mano, como ahora.

(...)

Pero a ella nunca le importó ser tonta ni “planchar” em los bailes.

(...)

El la alzaba y ella le rodeaba el cuello com los brazos, entre risas que eran como pequeños gorjeos y besos que le disparaba arturdidamente sobre los ojos, la frente y el pelo ya entonces canosa (¿es que nunca había sido joven?) como uma lluvia desordenada.

(...)

– Luis, nunca me has contado de qué color era exactamente tu pelo cuando eras chico, y nunca me has contado tambpoco lo que dijo tu madre cuando te empezaron a salir canas a los quince años. ¿Qué dijo? ¿Se rió ¿Lloró? ¿Y tú estabas orgulloso o tenías vergüenza? Y em el colegio, tus compañeros, ¿qué decían? Cuéntame, Luis, cuéntame...

Nestes quatro trechos temos uma aproximação, no mínimo instigante, entre narradora e protagonista. No primeiro parágrafo a narradora atesta que é muito agradável ser ignorante, reafirmando a idéia no parágrafo seguinte, já sob o aval da protagonista, dizendo que a ela nunca lhe importou tal condição. Tem-se, então, a confluência da opinião de ambas. Já nos dois próximos exemplos, percebe-se o compartilhamento de dúvidas. Ambas têm a mesma dúvida. De um lado, a narradora se questiona se Luis fora jovem algum dia, enquanto que Brígida, em outro momento, questiona Luis sobre o nascimento de seus cabelos brancos. Ambas desconhecem a origem dos cabelos e se sentem curiosas sobre o assunto.

Além disso, por vezes as vozes se confundem fisicamente no texto. Nem sempre fica claro quem é que está pensando, falando e, até mesmo, sentido a situação. Sobretudo ao se perceber as pontuações utilizadas pela autora.Voltando ao primeiro exemplo dado neste pequeno ensaio, percebe-se que, ao dar voz ao pensamento da protagonista, a voz narrativa utiliza-se de aspas para indicar a quem pertence o pensamento. Em outros momentos, a fala da protagonista é identificada pelo uso de travessão, mesmo fora de diálogos. Contudo, a situação fica comprometida frente a trechos como os seguintes:

– Porque tienes ojos de venadito asustado – contestaba él y la besaba. Y ella, súbitamente alegre, recibía orgullosa sobre su hombro el peso de su cabeza cana. ¡Oh, esse pelo plateado y brillante de Luis!

(...)

¡Mentira! Eran mentiras su resignación y su serenidad; quería amor, sí, amor, y viajes y locuras, y amor, amor...

No primeiro trecho, Luis responde à Brígida porque havia casado com ela. A narrativa segue normalmente, com a narradora costurando sua retórica até que aparece um comentário bastante pessoal a respeito dos cabelos de Luis. Sem inferir aspas ou travessão, a narradora demonstra sua admiração pelos cabelos de Luís manifestando uma surpreendente intimidade. Já o segundo trecho refere-se ao desfecho da história, momento em que Brígida se enche de coragem, compreende o mundo a sua volta e sua condição de oprimida na sociedade machista e patriarcal. Contudo, quem exalta a emoção e se revolta verbalmente contra Luís é a narradora, isso porque, novamente, não há uso de nenhum artifício lingüístico identificando o parágrafo como sido proferido pela protagonista.

Unindo estes levantamentos à metáfora do espelho identificada anteriormente, pode-se imaginar que este narrador é parte integrante da própria protagonista. Não é apenas um alguém que fala através dos filtros da personagem principal, mas sim a busca dessa mulher pela sua identidade, pelo seu Outro (e através de seu Outro) ou pelo seu verdadeiro Eu. Como, por vezes, a sociedade a identificou como tola, ignorante, incapaz, ela necessita da visão do outro para perceber suas próprias conquistas, ou, melhor dizendo, precisa da aprovação de um outro para validar suas próprias conclusões – por mais que este outro seja uma elevação de seu próprio ser, já liberto durante as digressões reflexivas de Brígida no momento em que se passa o conto.

Em suma, a voz narrativa no conto El árbol, é empregada de forma engenhosa e peculiar por Maria Luísa Bombal. Seguir a tipologia de Friedman para identificar essa voz leva a identificação de pontos em comum em diversos tipos de narrador, assim como dá embasamento para a negação destes mesmos arquétipos. Ainda que se utilize a onisciência seletiva por identificá-la a mais próxima ao conto, o texto se mostra tão próximo às sensações e reflexões da protagonista, que passa a ser a própria voz da protagonista, a qual está se auto-observando do lado de fora, como um outro indivíduo que, a partir do ocorrido na trama, tem esperteza suficiente para entender os fatos.

BIBLIOGRAFIA

BOMBALL, Maria Luisa. “El árbol”. In: Obras completas. Santiago: Andres Bello, 1996. (p.205-218)

LEITE, Ligia Chiappini M. “A tipologia de Norman Friedman” In: O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1997 (p.25-70)

LEVINE, SuzanneJill. El espejo de agua: hacia uma lectura de la ultima niebla de Maia Luisa Bomball. In: Revista Eco, Bogotá, n.º267, Janeiro de 1984. (p.326-336)



[1]Depois de acreditar que a voz narrativa é feminina, é impossível continuar o texto utilizando a palavra narrador em gênero masculino.

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