segunda-feira, 16 de julho de 2007

DESENVOLVIMENTO HUMANO E PARADOXOS DESENVOLVIMENTISTAS

(Texto de setembro de 2003)

A epopéia humana inicia-se muito antes do aparecimento do primeiro primata. Ela é contemporânea à história terrestre, à formação do planeta em que se dá este maravilhoso e intrigante milagre que é a Vida. Não que o primeiro ser humano tenha aparecido no justo momento em que se formou nosso planeta, aliás, estamos presentes neste há anos quase que insignificantes à história da formação terrestre. Quando proclamada a compatibilidade temporal entre ambos (Planeta Terra e seres humanos) é para dizer que somos as combinações dos átomos lançados à Terra há milhões, bilhões de anos; somos formados por conjuntos de partículas de carbono associadas de formas complexas e mágicas, características não exclusivas dos seres humanos, mas também traços comuns de todos os seres vivos de nosso planeta. Mas o que afinal nos diferencia dos outros tantos conjuntos de carbono em cujos fenômenos do nascimento, desenvolvimento, reprodução e morte ocorrem? Alguma providência divina ou força superior? Algum fortuito natural? Enfim, haveria razão para termos nos diferenciado tanto dos outros seres que apareceram no globo terrestre?
Não é possível, no presente momento, que qualquer homem do mundo responda com inequívoca certeza a tais questionamentos, principalmente porque a ética e o bom senso os impedem de traçar linhas inquestionáveis sobre a origem humana. Mas é fato que, seja pelo motivo que for, seja por acidente natural ou providências divinas, nosso corpo tem características sutis que levaram a espécie humana a dominar a si mesma e entender, mesmo que de forma parca ou equivocada, o ambiente em que vive. A começar pela engenhosa mão humana, com uma das maiores “obras de mecânica” conhecida: o polegar, algo como um “dispositivo” que se opõe aos outros dedos da mão e que, num conjunto articulado, capacitou e possibilitou ao homem a apropriação de toda a natureza, dando respaldo ao desenvolvimento de todo o restante do corpo, que passou a transformar-se de acordo com as novas possibilidades que no horizonte se abriam. O cérebro humano, outra maravilhosa engenhosidade, foi se desenvolvendo a partir daí, para poder perceber e transmitir as novas configurações que se apresentavam, criando então ligações cada vez mais complexas entre suas partes e, por conseqüência, promovendo novas transformações no mundo, desenvolvendo o raciocínio e, em decorrência, as relações humanas. O cérebro humano passou a ser o comandante da estrutura que se formara sob o signo de humano, responsabilizando-se pelo funcionamento deste corpo e configurando suas relações com os outros e o mundo, num eterno movimento de renovação que envolve observação, ação e interatividade, ensinamentos e aprendizagens, acúmulos de conhecimentos que são transmitidos a todas as gerações.
O desenvolvimento humano, pelo menos a priori, serviu para se adquirir uma cada vez maior e melhor apropriação da natureza. As técnicas desenvolvidas, desde a mais primitiva roda até os avançados sistemas informatizados, têm em seu caráter mais puro, ingênuo talvez, a melhor qualidade de vida humana, correlacionada ao conforto, praticidade, produtividade, entre outros tantos possíveis. E há de se reconhecer que o gênero humano conseguiu desenvolver sua tecnologia numa velocidade espantosamente grande, principalmente se comparada com o tempo cronológico que se presumi ter levado para que este mesmo grupo de seres vivos aparecesse no planeta, alcançando resultados de extrema eficiência.
Tal eficiência está relacionada às possibilidades abertas pela intervenção prática-intelectual que a humanidade foi capaz de engendrar. A interrelação entre diversas áreas do conhecimento humano possibilitou um ganho significante no que diz respeito à qualidade e aumento da expectativa de vida, transformando o homem num ser em constante mudança, que se protege não apenas com as possibilidades naturalmente postas, mas também através de sua capacidade de criar novas tecnologias, de perceber seu mundo de forma mais racional e menos instintiva.
Mas eficiência não é sinônimo de consciência, e muito menos se esta consciência for a dita “social”. A consciência humana, tão bem direcionada ao desenvolvimento tecnológico e à apropriação material da natureza, que abriu os limitados olhos dos homens e possibilitou-nos a visão em longa distância como aquela que enxerga os corpos celestes fora de nossa galáxia, ou ainda aquela que nos permite ver as mais ínfimas miudezas, como o interior das células que compõe o corpo humano, fecha os olhos para seus criadores, para sua origem. Nós fomos responsáveis pelo aumento da qualidade e da expectativa de vida humana. Mas de que seres humanos estamos falando? Por acaso são todos? Todos têm acesso à alimentação suficiente e diária, saudável e saborosa? Todos tem acesso à saúde para prevenir possíveis mazelas? Todos podem comunicar-se com pessoas há quilômetros de distância em tempo real? Todos podem falar o que quiser e ouvir o que desejam, optando inclusive pelo total silêncio?
As lembranças da juventude trazem à tona um documentário gaúcho chamado “Ilha das Flores”, que choca pela força de suas imagens. O filme mostra homens que produziam, homens que consumiam, homens que produziam lixo com o que consumiam (ou não consumiam), porcos que se alimentavam daquilo que os homens descartavam e, por fim, homens que se alimentavam daquilo que os porcos rejeitavam. E hoje, vemos que muito pouco (para não ser radical e dizer “nada”) foi inventado para incluir homens. Ao contrário, nossos olhos egoístas e preconceituosos, que nos posicionaram como donos do mundo e não um produto da natureza, fecham-se cada vez mais às fraquezas de nossas próprias criações.
A natureza nos deu as condições necessárias ao desenvolvimento biológico, intelectual e tecnológico, e nós arrancamo-lhe boa parte de sua capacidade de regeneração. Fomos capazes de inventar remédios, intervenções cirúrgicas, vacinas e até substituições, meios utilizados, muitas vezes, para salvar-nos das doenças que também criamos, das armas que inventamos para ferirmos e matarmos outros iguais a nós. Aumentamos nossa produção alimentícia, criamos técnicas, descobrimos o poder e a necessidade dos nutrientes que compõem os alimentos, ao mesmo tempo que demos margem a hábitos alimentares repulsivos ao bom funcionamento orgânico, além da massa excluída do direito de alimentar-se com dignidade e saúde. Somos gênios e medíocres.
Condenar o desenvolvimento é exagero, é negar o quanto somos beneficiados por esta formidável intenta humana. Contudo, devemos nos preocupar com suas conseqüências reprováveis, com o egocentrismo imperante, com a desconsideração inescrupulosa sobre aqueles que foram espoliados das oportunidades de participação no desenvolvimento. Mas, apesar do tom apocalíptico, ainda há esperança. Apesar de jamais ter visto uma sociedade onde todos usufruam dos recursos de forma comum, também não há registros sobre uma adesão consensual à apatia social em todas as camadas da sociedade onde se formou, firmou e reproduziu-se o gênero humano.

TÃO CRUEL QUANTO VIVER LÁ (resenha sobre o livro Capão Pecado, de Ferréz)

(Para mim, o mais interessante neste texto, é que ele foi feito a partir de uma leitura de um romance no tempo que eu ainda cursava Ciências Sociais. Acredito que hoje não teria a mesma forma, nem de escrita ou análise, mas não tenho ferramentas para afirmar contundentemente isso. Aos amigos da área de Teoria Literária, a análise de dois Valter(es) possíveis tem aqui um bom lugar. O texto foi feito no primeiro semestre de 2004).

Mais do que uma simples história, mais do que algumas linhas traçadas com o intuito de agradar o gosto literário dos consumidores. Estamos diante de um livro forte, carregado de sentimento e sobretudo de verdade. Refiro-me a obra de Ferréz, Capão Pecado, livro que conta, de forma romanceada, o cotidiano tenso dos moradores de um bairro que tem sob seu signo a imagem da crueldade física, mas que aos olhos menos atentos foge a situação de exclusão que lá fora impiedosamente implantada e que, segundo a estrutura de nossas instituições oficiais, não é algo anômalo considerando a forma que se organiza a sociedade em que vivemos.
Ferréz trata da miséria de um povo que vive sob as mais diversas formas de exclusão. A exclusão política – dada a falta de representação de seus interesses frente às autoridades das mais diversas instâncias (municipal, estadual ou federal) –, a exclusão econômica – a qual lhes impede de progredir e conquistar um lugar ao sol dentro de tempestuoso mercado de trabalho –, a exclusão social – que lhes nega direitos básicos num sistema criado sob máximas de liberdade e igualdade, e que não chega a estes indivíduos sequer na forma de assistencialismo – e a pior de todas as exclusões, a humana.
Quando penso em exclusão humana, não quero dizer que os homens são excluídos, o que pareceria no mínimo redundante. Penso sim na exclusão que os homens fazem de outros homens, numa desconsideração direta, sem intermediários. E é nisso que a obra de Ferréz fere aqueles que se julgam menos excludentes, afinal não é novidade a existência de favelas e bairros que abrigam pessoas de baixa renda, nem tampouco que há uma realidade diferente, com leis e regras “alternativas”, onde todos, bons ou maus, estão propícios ao mesmo destino, o que raramente se parece com os finais felizes que a mídia vomita sobre nossas cabeças todos os dias. Se tudo isso é verdade, onde estamos nós, sujeitos que se auto-definem como críticos e conscientes? Por que tão poucos se prezam a fazer parte desta voz que tentam violentamente calar a cada dia?
Mas do que o prazer de vermos alguém que tinha tudo para consentir com a situação colocada e viver sua vida entre o risco das balas, a superficialidade do trabalho escravo disfarçado pelo assaliariamento capitalista e o alívio fútil e abstrato das drogas, Ferréz nos mostra que é hora de não mais termos pena, não mais termos dó. O momento pede (para não dizer suplica) que assumamos nossa condição de cidadão ditos conscientes e comprometidos com o trabalho em prol daqueles que por tantas vezes consideramos desafortunados, mas são apenas as vítimas de nossa inércia, de nosso egoísmo, de nossa desconsideração.
O livro, obviamente, pode apresentar várias outras leituras, mas espero que todos os que se aventurarem a decifrar suas linhas tenham as suas feridas cutucadas além da superficialidade, e dessa maneira, tomem seu posicionamento realmente cidadão, discordante das atrocidades ocasionadas pela usura e pelo individualismo de nossa sociedade.

QUAL O PAPEL DA UTOPIA NA TRANSFORMAÇÃO DA REALIDADE?

(Texto de setembro de 2003)

Permita-me começar como uma colocação que, a primeiro momento parece obvia, contudo um pouco mais de reflexão a torna menos evidente ou mais duvidosa. É comum pensarmos (afirmarmos) que a humanidade “caminha para o futuro, pensa o futuro e alcança o futuro.” Caminhamos mesmo? Pensamos realmente sobre o futuro? Alcançamos um futuro?
Penso o futuro como algo a ser transformado. Algo novo, diferente, melhor. Se for para refletir o presente no futuro, como se o mundo e a vida fossem imutáveis, inertes, como se tudo estivesse pronto e não fosse possível modificar, melhorar, então nem pensaria sobre o futuro e viveria única e simplesmente o presente. “Preocupar-se para quê?” Nesta óptica, o futuro é apenas a repetição do presente (o que nos deixa vivendo no eterno passado...). Mas não me vejo capaz de pensar de forma tão fria, pois imagino que assim a vida perderia o sentido, o brilho mágico que nos move em direção ao todo, ao bom, ao que realmente nos agrada. Pensar o futuro é pensar como melhorar a situação e não ficar apenas especulando sobre como ele poderá ser. Não devemos brincar de videntes, devemos brincar de arquitetos e engenheiros.
Nesta saudável brincadeira, os arquitetos e engenheiros do futuro devem ser pessoas empreendedoras e com visão global, abrangente, inclusiva. Devem enxergar as possibilidades e criar seus projetos de vida com alegria e, sobretudo, esperança. Não há porque não tê-las. Por mais improvável que sejam suas aspirações, seus desejos, seus projetos de vida, é mister acreditar neles. A fronteira entre o presente posto e o futuro desejado não deve ser encarada como um limite que nos impede e nos restringe, mas sim como um obstáculo a ser vencido, confins que necessitam ser ampliados.
Este futuro, passivo de mutação, deve ser buscado como meta de transformação coletiva, e aí entra a utopia. Não a utopia do senso comum em que muitos julgam-na como desnecessária, visto que é de impossível realização. A utopia que defendo é a utopia dos homens e das mulheres que têm esperança, ou seja, aquela utopia que se crê possível, mesmo que improvável. Esta utopia nos ensina a caminhar sempre para o futuro, renovando nossas forças e norteando nossas atitudes. As pessoas de boa fé, de esperança, que acreditam numa transformação revolucionária do futuro, têm como marca indelével e inseparável esta busca utópica que rompe com a inércia, afasta a desesperança e impede a desistência. Acreditar é o primeiro passo para quem busca a transformação da realidade.

O TEMPO E A CIDADE

Junho de 2002 (É o resultado do Milton Santos em minha cabeça - um artigo que o mestre fez sobre o tempo. Originalmente, o que aqui se apresenta como primeiro parágrafo foi usado como fechamento do texto. Hoje, ainda não sei por qual causa, talvez por motivos estéticos, resolvi colocá-lo no início).


Seriam, tais palavras uma conclusão sobre tão tempestuoso tema, ou seriam apenas reflexões de um homem que, através da sua subjetividade, transcorreu sobre o tempo no seu tempo, através daquilo que herdara pelo tempo de outros tempos?

A cidade é o palco onde se apresentam os diversos personagens da vida urbana. Pessoas de todas as regiões, de todos os tipos, de todas as "tribos", de todos os gostos, de todos os credos... A cidade acolhe e expulsa as diferenças, de braços abertos cobertos de preconceito. A cidade une o impensável e segrega os homens dentro do mesmo espaço. Neste cenário tragicômico, os homens vivem o tempo que a cidade lhes permite, que a sociedade lhes permite, mas ainda vivem um tempo que só sua formação (cultural, social e histórica) permite viver, inundado de subjetividade e de lógica fora da lógica do capital.
Esta cidade urbana, concreta e que, a primeiro momento, mostra-se carrancuda e sem atração aos olhos humanos, é controlada por um tempo que já é mercadoria. O espaço se transforma em favor dos interesses da produção e as relações entre os homens parecem se perder no mar da individualidade exacerbada, legítima segundo o contexto histórico (ou seria tempo histórico?).
Mas este tempo convive com o passado, mesmo porque reconfigura o meio, mas não se livra dos fantasmas, herança de gerações passadas. E nesse convívio renasce o tempo que é único do homem, algo que antecede a mercadoria. Redescobre-se aqui a subjetividade do "sem pressa", o inconsciente. O tempo que não é mais sincrônico, ao contrário, varia de pessoa a pessoa, contribuindo assim para a humanização daquele que outrora fora dito como um móvel sisudo, impessoal, sem alma...
Forma-se, então, a cidade como o espaço da interação dos tempos. Do tempo atualmente transformado em mercadoria e que é rápido – por ser caro –, transformador do espaço, mas que só o faz respeitando o passado – portanto, o tempo histórico – e se utilizando dele para entender e reconfigurar o meio. E entre esta comunicação incessante, está toda a subjetividade dos atores desta obra que se renova a cada dia, a cada minuto, enfim, a todo tempo. A cidade é o espaço de ação, transformação e percepção do(s) tempo(s), que só é – ou são – possível(is) porque o(s) preenchemos, reconhecemos e nos utilizamos dele(s).

Filosofia da educação

(Na verdade, este texto não tem um título escolhido. Foi um texto encomendado por algumas professoras que cursavam - se é que se pode afirmar isso - uma dessas pós-graduações a distância pouco relevantes ao meu entender. Por isso, ele se apresenta pouco fundamentado e, de certa forma, descompromissado. Contudo, expressa mais ou menos como eu encaro a educação. Um dia escrevo algo melhor formulado. O texto, se não me engano, também é do segundo semestre de 2004 - talvez do primeiro).

Vivemos num momento na história da humanidade em que o desenvolvimento tecnológico atingiu tamanha proeminência que é inegável sua interferência em nosso cotidiano. Este desenvolvimento diminuiu a distância física entre pontos geograficamente distantes, possibilitando uma comunicação quase que imediata entre pessoas que, em outros tempos, demorariam muito tempo para estabelecer um contato. Ele também nos facilitou o acesso às informações e transformou a cobertura jornalística quase que num trabalho de divulgação ao vivo. E nessa mesma velocidade empreendida por esta nova era tecnológica, as mudanças dentro da sociedade vêm ocorrendo, num processo de destruição e renovação de dogmas e paradigmas que assusta até mesmos aqueles que se consideram mais preparados para enfrentá-los.
Desta forma, a questão pedagógica tem sido posta de modo a pensar em como formar os profissionais a serem absorvidos por um mercado de trabalho que muda de direção e preferência, de especializações e qualificações, de modos e tendências, enfim, que é uma incógnita mutante e constante – pensando-se num futuro seja qual for, próximo ou distante. Além disso, como preparar o ser humano para uma sociedade que age da mesma forma do mercado, transformando suas relações tão rápido quanto jamais fora visto em milênios de história humana.
Mostra-se, assim, a importância da percepção filosófica dentro das práticas pedagógicas dos profissionais que pensam a escola como um todo no conjunto da sociedade, contextualizando o processo de ensino-aprendizagem com as questões da atualidade e as possibilidades de futuro, de forma que este profissional possa ter e transmitir toda a criticidade necessária para que não levemos a humanidade à um caminho mítico de que a tecnologia e o dinheiro é o senhor que rege nossas leis e nossas vidas.
A prática filosófica tem como uma de suas características a coragem de olhar para si mesma e para seus objetos de estudos de forma crítica (e autocrítica) reiventando-se a cada inovação dentro de seu pensamento e admitindo sua contextualização com a atualidade de seu tempo. Esta dinâmica, ensina-nos a histórica filosófica, lhe deu concretude e credibilidade, ensinou seus seguidores a perceberem os pormenores de seu mundo, a origem de questionamentos e a direção das ações tomadas pelos governantes, dentro de uma visão bastante global e generalizada. Esta é uma das principais contribuições que a filosofia tem para dar à pedagogia e, conseqüentemente, à toda a sociedade, pois ensina que o pensamento deve estar orientado não para a aceitação apática das regras e conceitos que nos foram dados, nem tampouco a prática deve estagnar-se de acordo com os exemplos externos ou antigos. Ao contrário, a filosofia cria subsídios para diferentes explicações e visões de mundo e, através da análise crítica que ela prevê, podemos orientar nosso pensamento e nossa prática cotidiana de modo a estar em constante questionamento pessoal (pensando nossa visão de mundo particular, nossa prática comum, etc.) e global (pensando a visão da sociedade, o que ela demanda, impõe, solicita, esconde, etc.). Refletir, por mais que pareça uma perda de tempo mediante o imediatismo da vida contemporânea, é parte essencial daqueles que pensam a pedagogia e com ela trabalham diariamente, pois caracteriza-se como o momento em que pode-se haver a gênese da percepção do mundo e da possibilidade de quebra com práticas desconexas, desorientadas e/ou descontextualizada, caminho aberto então para uma transformação que possa melhor orientar tanto o profissional reflexivo como aqueles ao seu redor, dando margem à uma preparação sólida, que transcende o mero aspecto tecnicista e privilegia, também, as questões reflexivas (portanto filosóficas) que resultam numa formação humanística.

Coisa do destino?

(Feito no segundo semestre de 2004, não lembro a data com precisão).

Ela, Patrícia Penélope Figueiredo Albuquerque, acordou naquele dia ao som da sua banda de “pop rock” predileta às seis horas da manhã, conforme havia programado em seu aparelho de som de última geração, comprado recentemente à vista numa página da internet. Ele, José, ou apenas Zezinho, as cinco e meia já estava em pé, despertado pelo ronco dos ônibus que desciam a rua de sua casa em disparada e faziam estremecer as paredes do lugar que sua mãe insistia em chamar de lar.
No café da manhã, os brioches e croissant, regados a suco natural com adoçante da mesa dela, distanciavam-se do pão amanhecido e do café ralo que ele tomava, deliciando-se com uma piada pronta que seu irmão fazia com a irmã do meio: “O chafé tá pronto?”.
Banho de hidromassagem, xampu importado, condicionador e creme disciplinador para o cabelo, sabonete líquido de ervas aromáticas, toalha de algodão bordada com as iniciais, máscara facial, escova de dente elétrica com pasta sabor “tutti-frutti” que brilha no escuro, secador de cabelo, roupa da moda, presilhas, cinto, bolsa e demais acessórios; maquiagem leve, porém completa.
Short, chinelo, camiseta regata e boné. Um “oi” na escova de dente quase sem cerdas e um sorriso apressado no espelho 15x25cm.
Destino: ela para o colégio; ele para o cruzamento. Brincadeira do destino: o colégio fica na frente do cruzamento.
O motorista que presta serviço a um dos donos da fábrica de chinelos leva Patrícia Penélope para a escola e fecha o vidro do carro – que não é dele – na cara do José vendedor de balas que, por sua vez, usa os chinelos da fábrica do pai de Patrícia.
Os dois jovens, numa rara oportunidade, dividem o mesmo espaço ­– a rua –, a mesma situação – o assalto ao carro forte da agência bancária que fica em frente ao colégio particular – e o mesmo presente – a bala perdida.
Nele, bala calibre 22 na região abdominal. Não sangrou muito e não retirou-lhe a consciência. Nada que um pronto atendimento não pudesse cuidar sem grandes complicações ao paciente. Nela, perfuração na região do peito, próxima ao coração. Caso delicado. Risco de morte.
O plano de saúde dela utilizou até um helicóptero e salvou-lhe a vida, finalizando os procedimentos cirúrgicos com uma plástica corretiva, alguns meses de análise com psicólogo particular e uma estadia de um mês em um “spa” para relaxar e esquecer o trauma de andar na rua. Já o atendimento para José foi muito demorado e ele faleceu por hemorragia interna. Os médicos disseram que precisavam da autorização dos pais para operá-lo, mas sua mãe só ficou sabendo do fato quando saiu da casa dos Figueiredo Albuquerque, onde trabalhava como doméstica.
Nota: os jornais acompanharam o caso de Patrícia Penélope com notícias de 1a página e artigos de protesto durante várias semanas. José teve direito a uma nota no edital de necrologia .

Cidade: capital, medo e prisões

(Texto escrito em novembro de 2003)

Nas grandes cidades, de um país tão violento,
Os muros e as grades nos protegem de quase tudo.
Mais o quase tudo, quase sempre é quase nada,
E nada nos protege de uma vida sem sentido.
(Engenheiros de Hawaii)

Grades, lanças, muros altíssimos, cerca eletrificada, vidros escurecidos, complexos sistemas de alarme do tipo high-tech, circuitos internos de vídeo, homens uniformizados, armas, trincheiras, medo. Nas cidades, principalmente as de grande e médio porte, a classe média e alta escondem-se atrás da segurança equivocada dos muros de suas fortalezas, que tampa seus olhos e os impede de enxergar a realidade violenta que castiga o mendigo que deita sob viadutos, a prostituta que vende seu corpo durante as madrugadas incertas, o estudante que volta receosamente para casa e o executivo camuflado através do insulfim do carro blindado.
O mesmo capital que desenvolve a tecnologia, aumenta a expectativa de vida dos homens e cria possibilidades de comunicação imediata entre pontos fisicamente distantes do planeta, causando fascínio aos olhos da população, também cria as contradições entre os homens, e estas, por sua vez, fazem-se concretas dentro da cidade, pois é nela que se dão as relações de troca que geram os diversos conflitos entre grupos diferentes, divididos por conta das posições ideológicas, sociais ou econômicas que cada um possui. Este mesmo capital cria a exclusão, deixando de fora de seu "magnífico estilo de vida" a maior parte da população, o que, muitas vezes, promove a violência – reação à falta de acesso às idolatrias capitalistas – e o individualismo. É dele, também, a responsabilidade pela apropriação de todo o espaço, não mais visto como algo pertencente à coletividade. Como tudo é privado, para usufruir do espaço é necessário que se tenha condições – financeiras, diga-se de passagem – para nele entranhar-se, o que não é de alcance da maioria.
Por isso a cidade hoje se fecha num mar de concreto insensível, donde foram expulsas as relações de trocas subjetivas entre os diversos indivíduos e, em seu lugar, ficou a interminável tensão entre os que tentam se proteger daquilo que, inconscientemente, incentivam. O espaço vive então uma releitura das fortalezas medievais com muros altos de lanças pontiagudas e acrescidos de fios eletrificados. Os fossos ainda existem mas não têm jacarés à espera do invasor, seus similares moram nos quintais e atendem por pitbull e rotweiller. Se uns são excluídos do processo de acumulação e uso dos benefícios que a tecnologia patrocinada pelo capitalismo proporciona, outros se privam da liberdade gritada aos quatro ventos na época do iluminismo, trancando-se em seus cárceres que são, obviamente, privados.