segunda-feira, 16 de julho de 2007
DESENVOLVIMENTO HUMANO E PARADOXOS DESENVOLVIMENTISTAS
A epopéia humana inicia-se muito antes do aparecimento do primeiro primata. Ela é contemporânea à história terrestre, à formação do planeta em que se dá este maravilhoso e intrigante milagre que é a Vida. Não que o primeiro ser humano tenha aparecido no justo momento em que se formou nosso planeta, aliás, estamos presentes neste há anos quase que insignificantes à história da formação terrestre. Quando proclamada a compatibilidade temporal entre ambos (Planeta Terra e seres humanos) é para dizer que somos as combinações dos átomos lançados à Terra há milhões, bilhões de anos; somos formados por conjuntos de partículas de carbono associadas de formas complexas e mágicas, características não exclusivas dos seres humanos, mas também traços comuns de todos os seres vivos de nosso planeta. Mas o que afinal nos diferencia dos outros tantos conjuntos de carbono em cujos fenômenos do nascimento, desenvolvimento, reprodução e morte ocorrem? Alguma providência divina ou força superior? Algum fortuito natural? Enfim, haveria razão para termos nos diferenciado tanto dos outros seres que apareceram no globo terrestre?
Não é possível, no presente momento, que qualquer homem do mundo responda com inequívoca certeza a tais questionamentos, principalmente porque a ética e o bom senso os impedem de traçar linhas inquestionáveis sobre a origem humana. Mas é fato que, seja pelo motivo que for, seja por acidente natural ou providências divinas, nosso corpo tem características sutis que levaram a espécie humana a dominar a si mesma e entender, mesmo que de forma parca ou equivocada, o ambiente em que vive. A começar pela engenhosa mão humana, com uma das maiores “obras de mecânica” conhecida: o polegar, algo como um “dispositivo” que se opõe aos outros dedos da mão e que, num conjunto articulado, capacitou e possibilitou ao homem a apropriação de toda a natureza, dando respaldo ao desenvolvimento de todo o restante do corpo, que passou a transformar-se de acordo com as novas possibilidades que no horizonte se abriam. O cérebro humano, outra maravilhosa engenhosidade, foi se desenvolvendo a partir daí, para poder perceber e transmitir as novas configurações que se apresentavam, criando então ligações cada vez mais complexas entre suas partes e, por conseqüência, promovendo novas transformações no mundo, desenvolvendo o raciocínio e, em decorrência, as relações humanas. O cérebro humano passou a ser o comandante da estrutura que se formara sob o signo de humano, responsabilizando-se pelo funcionamento deste corpo e configurando suas relações com os outros e o mundo, num eterno movimento de renovação que envolve observação, ação e interatividade, ensinamentos e aprendizagens, acúmulos de conhecimentos que são transmitidos a todas as gerações.
O desenvolvimento humano, pelo menos a priori, serviu para se adquirir uma cada vez maior e melhor apropriação da natureza. As técnicas desenvolvidas, desde a mais primitiva roda até os avançados sistemas informatizados, têm em seu caráter mais puro, ingênuo talvez, a melhor qualidade de vida humana, correlacionada ao conforto, praticidade, produtividade, entre outros tantos possíveis. E há de se reconhecer que o gênero humano conseguiu desenvolver sua tecnologia numa velocidade espantosamente grande, principalmente se comparada com o tempo cronológico que se presumi ter levado para que este mesmo grupo de seres vivos aparecesse no planeta, alcançando resultados de extrema eficiência.
Tal eficiência está relacionada às possibilidades abertas pela intervenção prática-intelectual que a humanidade foi capaz de engendrar. A interrelação entre diversas áreas do conhecimento humano possibilitou um ganho significante no que diz respeito à qualidade e aumento da expectativa de vida, transformando o homem num ser em constante mudança, que se protege não apenas com as possibilidades naturalmente postas, mas também através de sua capacidade de criar novas tecnologias, de perceber seu mundo de forma mais racional e menos instintiva.
Mas eficiência não é sinônimo de consciência, e muito menos se esta consciência for a dita “social”. A consciência humana, tão bem direcionada ao desenvolvimento tecnológico e à apropriação material da natureza, que abriu os limitados olhos dos homens e possibilitou-nos a visão em longa distância como aquela que enxerga os corpos celestes fora de nossa galáxia, ou ainda aquela que nos permite ver as mais ínfimas miudezas, como o interior das células que compõe o corpo humano, fecha os olhos para seus criadores, para sua origem. Nós fomos responsáveis pelo aumento da qualidade e da expectativa de vida humana. Mas de que seres humanos estamos falando? Por acaso são todos? Todos têm acesso à alimentação suficiente e diária, saudável e saborosa? Todos tem acesso à saúde para prevenir possíveis mazelas? Todos podem comunicar-se com pessoas há quilômetros de distância em tempo real? Todos podem falar o que quiser e ouvir o que desejam, optando inclusive pelo total silêncio?
As lembranças da juventude trazem à tona um documentário gaúcho chamado “Ilha das Flores”, que choca pela força de suas imagens. O filme mostra homens que produziam, homens que consumiam, homens que produziam lixo com o que consumiam (ou não consumiam), porcos que se alimentavam daquilo que os homens descartavam e, por fim, homens que se alimentavam daquilo que os porcos rejeitavam. E hoje, vemos que muito pouco (para não ser radical e dizer “nada”) foi inventado para incluir homens. Ao contrário, nossos olhos egoístas e preconceituosos, que nos posicionaram como donos do mundo e não um produto da natureza, fecham-se cada vez mais às fraquezas de nossas próprias criações.
A natureza nos deu as condições necessárias ao desenvolvimento biológico, intelectual e tecnológico, e nós arrancamo-lhe boa parte de sua capacidade de regeneração. Fomos capazes de inventar remédios, intervenções cirúrgicas, vacinas e até substituições, meios utilizados, muitas vezes, para salvar-nos das doenças que também criamos, das armas que inventamos para ferirmos e matarmos outros iguais a nós. Aumentamos nossa produção alimentícia, criamos técnicas, descobrimos o poder e a necessidade dos nutrientes que compõem os alimentos, ao mesmo tempo que demos margem a hábitos alimentares repulsivos ao bom funcionamento orgânico, além da massa excluída do direito de alimentar-se com dignidade e saúde. Somos gênios e medíocres.
Condenar o desenvolvimento é exagero, é negar o quanto somos beneficiados por esta formidável intenta humana. Contudo, devemos nos preocupar com suas conseqüências reprováveis, com o egocentrismo imperante, com a desconsideração inescrupulosa sobre aqueles que foram espoliados das oportunidades de participação no desenvolvimento. Mas, apesar do tom apocalíptico, ainda há esperança. Apesar de jamais ter visto uma sociedade onde todos usufruam dos recursos de forma comum, também não há registros sobre uma adesão consensual à apatia social em todas as camadas da sociedade onde se formou, firmou e reproduziu-se o gênero humano.
TÃO CRUEL QUANTO VIVER LÁ (resenha sobre o livro Capão Pecado, de Ferréz)
Mais do que uma simples história, mais do que algumas linhas traçadas com o intuito de agradar o gosto literário dos consumidores. Estamos diante de um livro forte, carregado de sentimento e sobretudo de verdade. Refiro-me a obra de Ferréz, Capão Pecado, livro que conta, de forma romanceada, o cotidiano tenso dos moradores de um bairro que tem sob seu signo a imagem da crueldade física, mas que aos olhos menos atentos foge a situação de exclusão que lá fora impiedosamente implantada e que, segundo a estrutura de nossas instituições oficiais, não é algo anômalo considerando a forma que se organiza a sociedade em que vivemos.
Ferréz trata da miséria de um povo que vive sob as mais diversas formas de exclusão. A exclusão política – dada a falta de representação de seus interesses frente às autoridades das mais diversas instâncias (municipal, estadual ou federal) –, a exclusão econômica – a qual lhes impede de progredir e conquistar um lugar ao sol dentro de tempestuoso mercado de trabalho –, a exclusão social – que lhes nega direitos básicos num sistema criado sob máximas de liberdade e igualdade, e que não chega a estes indivíduos sequer na forma de assistencialismo – e a pior de todas as exclusões, a humana.
Quando penso em exclusão humana, não quero dizer que os homens são excluídos, o que pareceria no mínimo redundante. Penso sim na exclusão que os homens fazem de outros homens, numa desconsideração direta, sem intermediários. E é nisso que a obra de Ferréz fere aqueles que se julgam menos excludentes, afinal não é novidade a existência de favelas e bairros que abrigam pessoas de baixa renda, nem tampouco que há uma realidade diferente, com leis e regras “alternativas”, onde todos, bons ou maus, estão propícios ao mesmo destino, o que raramente se parece com os finais felizes que a mídia vomita sobre nossas cabeças todos os dias. Se tudo isso é verdade, onde estamos nós, sujeitos que se auto-definem como críticos e conscientes? Por que tão poucos se prezam a fazer parte desta voz que tentam violentamente calar a cada dia?
Mas do que o prazer de vermos alguém que tinha tudo para consentir com a situação colocada e viver sua vida entre o risco das balas, a superficialidade do trabalho escravo disfarçado pelo assaliariamento capitalista e o alívio fútil e abstrato das drogas, Ferréz nos mostra que é hora de não mais termos pena, não mais termos dó. O momento pede (para não dizer suplica) que assumamos nossa condição de cidadão ditos conscientes e comprometidos com o trabalho em prol daqueles que por tantas vezes consideramos desafortunados, mas são apenas as vítimas de nossa inércia, de nosso egoísmo, de nossa desconsideração.
O livro, obviamente, pode apresentar várias outras leituras, mas espero que todos os que se aventurarem a decifrar suas linhas tenham as suas feridas cutucadas além da superficialidade, e dessa maneira, tomem seu posicionamento realmente cidadão, discordante das atrocidades ocasionadas pela usura e pelo individualismo de nossa sociedade.
QUAL O PAPEL DA UTOPIA NA TRANSFORMAÇÃO DA REALIDADE?
Permita-me começar como uma colocação que, a primeiro momento parece obvia, contudo um pouco mais de reflexão a torna menos evidente ou mais duvidosa. É comum pensarmos (afirmarmos) que a humanidade “caminha para o futuro, pensa o futuro e alcança o futuro.” Caminhamos mesmo? Pensamos realmente sobre o futuro? Alcançamos um futuro?
Penso o futuro como algo a ser transformado. Algo novo, diferente, melhor. Se for para refletir o presente no futuro, como se o mundo e a vida fossem imutáveis, inertes, como se tudo estivesse pronto e não fosse possível modificar, melhorar, então nem pensaria sobre o futuro e viveria única e simplesmente o presente. “Preocupar-se para quê?” Nesta óptica, o futuro é apenas a repetição do presente (o que nos deixa vivendo no eterno passado...). Mas não me vejo capaz de pensar de forma tão fria, pois imagino que assim a vida perderia o sentido, o brilho mágico que nos move em direção ao todo, ao bom, ao que realmente nos agrada. Pensar o futuro é pensar como melhorar a situação e não ficar apenas especulando sobre como ele poderá ser. Não devemos brincar de videntes, devemos brincar de arquitetos e engenheiros.
Nesta saudável brincadeira, os arquitetos e engenheiros do futuro devem ser pessoas empreendedoras e com visão global, abrangente, inclusiva. Devem enxergar as possibilidades e criar seus projetos de vida com alegria e, sobretudo, esperança. Não há porque não tê-las. Por mais improvável que sejam suas aspirações, seus desejos, seus projetos de vida, é mister acreditar neles. A fronteira entre o presente posto e o futuro desejado não deve ser encarada como um limite que nos impede e nos restringe, mas sim como um obstáculo a ser vencido, confins que necessitam ser ampliados.
Este futuro, passivo de mutação, deve ser buscado como meta de transformação coletiva, e aí entra a utopia. Não a utopia do senso comum em que muitos julgam-na como desnecessária, visto que é de impossível realização. A utopia que defendo é a utopia dos homens e das mulheres que têm esperança, ou seja, aquela utopia que se crê possível, mesmo que improvável. Esta utopia nos ensina a caminhar sempre para o futuro, renovando nossas forças e norteando nossas atitudes. As pessoas de boa fé, de esperança, que acreditam numa transformação revolucionária do futuro, têm como marca indelével e inseparável esta busca utópica que rompe com a inércia, afasta a desesperança e impede a desistência. Acreditar é o primeiro passo para quem busca a transformação da realidade.
O TEMPO E A CIDADE
Seriam, tais palavras uma conclusão sobre tão tempestuoso tema, ou seriam apenas reflexões de um homem que, através da sua subjetividade, transcorreu sobre o tempo no seu tempo, através daquilo que herdara pelo tempo de outros tempos?
A cidade é o palco onde se apresentam os diversos personagens da vida urbana. Pessoas de todas as regiões, de todos os tipos, de todas as "tribos", de todos os gostos, de todos os credos... A cidade acolhe e expulsa as diferenças, de braços abertos cobertos de preconceito. A cidade une o impensável e segrega os homens dentro do mesmo espaço. Neste cenário tragicômico, os homens vivem o tempo que a cidade lhes permite, que a sociedade lhes permite, mas ainda vivem um tempo que só sua formação (cultural, social e histórica) permite viver, inundado de subjetividade e de lógica fora da lógica do capital.
Esta cidade urbana, concreta e que, a primeiro momento, mostra-se carrancuda e sem atração aos olhos humanos, é controlada por um tempo que já é mercadoria. O espaço se transforma em favor dos interesses da produção e as relações entre os homens parecem se perder no mar da individualidade exacerbada, legítima segundo o contexto histórico (ou seria tempo histórico?).
Mas este tempo convive com o passado, mesmo porque reconfigura o meio, mas não se livra dos fantasmas, herança de gerações passadas. E nesse convívio renasce o tempo que é único do homem, algo que antecede a mercadoria. Redescobre-se aqui a subjetividade do "sem pressa", o inconsciente. O tempo que não é mais sincrônico, ao contrário, varia de pessoa a pessoa, contribuindo assim para a humanização daquele que outrora fora dito como um móvel sisudo, impessoal, sem alma...
Forma-se, então, a cidade como o espaço da interação dos tempos. Do tempo atualmente transformado em mercadoria e que é rápido – por ser caro –, transformador do espaço, mas que só o faz respeitando o passado – portanto, o tempo histórico – e se utilizando dele para entender e reconfigurar o meio. E entre esta comunicação incessante, está toda a subjetividade dos atores desta obra que se renova a cada dia, a cada minuto, enfim, a todo tempo. A cidade é o espaço de ação, transformação e percepção do(s) tempo(s), que só é – ou são – possível(is) porque o(s) preenchemos, reconhecemos e nos utilizamos dele(s).
Filosofia da educação
Vivemos num momento na história da humanidade em que o desenvolvimento tecnológico atingiu tamanha proeminência que é inegável sua interferência em nosso cotidiano. Este desenvolvimento diminuiu a distância física entre pontos geograficamente distantes, possibilitando uma comunicação quase que imediata entre pessoas que, em outros tempos, demorariam muito tempo para estabelecer um contato. Ele também nos facilitou o acesso às informações e transformou a cobertura jornalística quase que num trabalho de divulgação ao vivo. E nessa mesma velocidade empreendida por esta nova era tecnológica, as mudanças dentro da sociedade vêm ocorrendo, num processo de destruição e renovação de dogmas e paradigmas que assusta até mesmos aqueles que se consideram mais preparados para enfrentá-los.
Desta forma, a questão pedagógica tem sido posta de modo a pensar em como formar os profissionais a serem absorvidos por um mercado de trabalho que muda de direção e preferência, de especializações e qualificações, de modos e tendências, enfim, que é uma incógnita mutante e constante – pensando-se num futuro seja qual for, próximo ou distante. Além disso, como preparar o ser humano para uma sociedade que age da mesma forma do mercado, transformando suas relações tão rápido quanto jamais fora visto em milênios de história humana.
Mostra-se, assim, a importância da percepção filosófica dentro das práticas pedagógicas dos profissionais que pensam a escola como um todo no conjunto da sociedade, contextualizando o processo de ensino-aprendizagem com as questões da atualidade e as possibilidades de futuro, de forma que este profissional possa ter e transmitir toda a criticidade necessária para que não levemos a humanidade à um caminho mítico de que a tecnologia e o dinheiro é o senhor que rege nossas leis e nossas vidas.
A prática filosófica tem como uma de suas características a coragem de olhar para si mesma e para seus objetos de estudos de forma crítica (e autocrítica) reiventando-se a cada inovação dentro de seu pensamento e admitindo sua contextualização com a atualidade de seu tempo. Esta dinâmica, ensina-nos a histórica filosófica, lhe deu concretude e credibilidade, ensinou seus seguidores a perceberem os pormenores de seu mundo, a origem de questionamentos e a direção das ações tomadas pelos governantes, dentro de uma visão bastante global e generalizada. Esta é uma das principais contribuições que a filosofia tem para dar à pedagogia e, conseqüentemente, à toda a sociedade, pois ensina que o pensamento deve estar orientado não para a aceitação apática das regras e conceitos que nos foram dados, nem tampouco a prática deve estagnar-se de acordo com os exemplos externos ou antigos. Ao contrário, a filosofia cria subsídios para diferentes explicações e visões de mundo e, através da análise crítica que ela prevê, podemos orientar nosso pensamento e nossa prática cotidiana de modo a estar em constante questionamento pessoal (pensando nossa visão de mundo particular, nossa prática comum, etc.) e global (pensando a visão da sociedade, o que ela demanda, impõe, solicita, esconde, etc.). Refletir, por mais que pareça uma perda de tempo mediante o imediatismo da vida contemporânea, é parte essencial daqueles que pensam a pedagogia e com ela trabalham diariamente, pois caracteriza-se como o momento em que pode-se haver a gênese da percepção do mundo e da possibilidade de quebra com práticas desconexas, desorientadas e/ou descontextualizada, caminho aberto então para uma transformação que possa melhor orientar tanto o profissional reflexivo como aqueles ao seu redor, dando margem à uma preparação sólida, que transcende o mero aspecto tecnicista e privilegia, também, as questões reflexivas (portanto filosóficas) que resultam numa formação humanística.
Coisa do destino?
Ela, Patrícia Penélope Figueiredo Albuquerque, acordou naquele dia ao som da sua banda de “pop rock” predileta às seis horas da manhã, conforme havia programado em seu aparelho de som de última geração, comprado recentemente à vista numa página da internet. Ele, José, ou apenas Zezinho, as cinco e meia já estava em pé, despertado pelo ronco dos ônibus que desciam a rua de sua casa em disparada e faziam estremecer as paredes do lugar que sua mãe insistia em chamar de lar.
No café da manhã, os brioches e croissant, regados a suco natural com adoçante da mesa dela, distanciavam-se do pão amanhecido e do café ralo que ele tomava, deliciando-se com uma piada pronta que seu irmão fazia com a irmã do meio: “O chafé tá pronto?”.
Banho de hidromassagem, xampu importado, condicionador e creme disciplinador para o cabelo, sabonete líquido de ervas aromáticas, toalha de algodão bordada com as iniciais, máscara facial, escova de dente elétrica com pasta sabor “tutti-frutti” que brilha no escuro, secador de cabelo, roupa da moda, presilhas, cinto, bolsa e demais acessórios; maquiagem leve, porém completa.
Short, chinelo, camiseta regata e boné. Um “oi” na escova de dente quase sem cerdas e um sorriso apressado no espelho 15x25cm.
Destino: ela para o colégio; ele para o cruzamento. Brincadeira do destino: o colégio fica na frente do cruzamento.
O motorista que presta serviço a um dos donos da fábrica de chinelos leva Patrícia Penélope para a escola e fecha o vidro do carro – que não é dele – na cara do José vendedor de balas que, por sua vez, usa os chinelos da fábrica do pai de Patrícia.
Os dois jovens, numa rara oportunidade, dividem o mesmo espaço – a rua –, a mesma situação – o assalto ao carro forte da agência bancária que fica em frente ao colégio particular – e o mesmo presente – a bala perdida.
Nele, bala calibre 22 na região abdominal. Não sangrou muito e não retirou-lhe a consciência. Nada que um pronto atendimento não pudesse cuidar sem grandes complicações ao paciente. Nela, perfuração na região do peito, próxima ao coração. Caso delicado. Risco de morte.
O plano de saúde dela utilizou até um helicóptero e salvou-lhe a vida, finalizando os procedimentos cirúrgicos com uma plástica corretiva, alguns meses de análise com psicólogo particular e uma estadia de um mês em um “spa” para relaxar e esquecer o trauma de andar na rua. Já o atendimento para José foi muito demorado e ele faleceu por hemorragia interna. Os médicos disseram que precisavam da autorização dos pais para operá-lo, mas sua mãe só ficou sabendo do fato quando saiu da casa dos Figueiredo Albuquerque, onde trabalhava como doméstica.
Nota: os jornais acompanharam o caso de Patrícia Penélope com notícias de 1a página e artigos de protesto durante várias semanas. José teve direito a uma nota no edital de necrologia .
Cidade: capital, medo e prisões
Nas grandes cidades, de um país tão violento,
Os muros e as grades nos protegem de quase tudo.
Mais o quase tudo, quase sempre é quase nada,
E nada nos protege de uma vida sem sentido.
(Engenheiros de Hawaii)
Grades, lanças, muros altíssimos, cerca eletrificada, vidros escurecidos, complexos sistemas de alarme do tipo high-tech, circuitos internos de vídeo, homens uniformizados, armas, trincheiras, medo. Nas cidades, principalmente as de grande e médio porte, a classe média e alta escondem-se atrás da segurança equivocada dos muros de suas fortalezas, que tampa seus olhos e os impede de enxergar a realidade violenta que castiga o mendigo que deita sob viadutos, a prostituta que vende seu corpo durante as madrugadas incertas, o estudante que volta receosamente para casa e o executivo camuflado através do insulfim do carro blindado.
O mesmo capital que desenvolve a tecnologia, aumenta a expectativa de vida dos homens e cria possibilidades de comunicação imediata entre pontos fisicamente distantes do planeta, causando fascínio aos olhos da população, também cria as contradições entre os homens, e estas, por sua vez, fazem-se concretas dentro da cidade, pois é nela que se dão as relações de troca que geram os diversos conflitos entre grupos diferentes, divididos por conta das posições ideológicas, sociais ou econômicas que cada um possui. Este mesmo capital cria a exclusão, deixando de fora de seu "magnífico estilo de vida" a maior parte da população, o que, muitas vezes, promove a violência – reação à falta de acesso às idolatrias capitalistas – e o individualismo. É dele, também, a responsabilidade pela apropriação de todo o espaço, não mais visto como algo pertencente à coletividade. Como tudo é privado, para usufruir do espaço é necessário que se tenha condições – financeiras, diga-se de passagem – para nele entranhar-se, o que não é de alcance da maioria.
Por isso a cidade hoje se fecha num mar de concreto insensível, donde foram expulsas as relações de trocas subjetivas entre os diversos indivíduos e, em seu lugar, ficou a interminável tensão entre os que tentam se proteger daquilo que, inconscientemente, incentivam. O espaço vive então uma releitura das fortalezas medievais com muros altos de lanças pontiagudas e acrescidos de fios eletrificados. Os fossos ainda existem mas não têm jacarés à espera do invasor, seus similares moram nos quintais e atendem por pitbull e rotweiller. Se uns são excluídos do processo de acumulação e uso dos benefícios que a tecnologia patrocinada pelo capitalismo proporciona, outros se privam da liberdade gritada aos quatro ventos na época do iluminismo, trancando-se em seus cárceres que são, obviamente, privados.
segunda-feira, 4 de junho de 2007
Cuidado cachorro!
Cuidado cachorro!
Neste momento, eu queria ser o que todos torcem ou acham. Queria ser puto ou alcoviteiro. Queria ser o dado, o sem-limites, o topa-tudo, o niilista. Queria não
ser o fiel amigo, o fiel companheiro. Mas nós, cães (talvez os poucos que sobraram), aprendemos sempre a rolar e dar a pata, e estamos no eterno aprendizado
de nos fingir de morto.
Mijo de poste em poste demarcando meu território sem perceber que é o meu dono que
define o meu caminho.
Engulo minha vida que é cheia de louros – como os louros colhidos pelos heróis. Mas os meus são diferentes (como sempre!). Minha loira em minha frente, engulo-a sempre
com prazer, mesmo sendo amarga, mesmo sendo fria, mesmo esfolando a minha garganta nesta quase última noite de inverno (que apesar do avançado da hora, do
determinismo temporal, promete ainda assim ser longa). Minha loira, a que desce agora, é quente e arrepiante, diria quase repugnante pelo gosto forte e pouco
apreciativo. Desce com o meu gosto, desce por que quero, desce para dentro de mim (agora quente).
O adestramento não pára no aprendizado precedente. A questionável sabedoria diz que cães que ladrem não mordem. Inútil e inocente sabedoria. Mal sabe que há muito não
lato e, sequer, mordo. Agora sei que, dia-a-dia, aprendo até a mostrar os dentes sem rosnar.
Um dia, uma noite e mais uma que engulo a seco nos bares. Quem dera poder! Quem dera conseguir! Mas só querem que eu seja o que eles pensam que eu sou (ou o que eu
possa ser). Recolho-me à minha hipocrisia e volto ébrio para acordar como se nada tivesse acontecido. De poste em poste, demarcando território. (Que território?) Volto
amanhã a tudo o que querem. Volto amanhã com minha neurose e minha dor de cabeça. Volto amanhã porque ainda há o medo da morte.
Juventudes partidárias - Artigo
O artigo é de março de 2005 e foi escrito para o Congresso de Sociologia realizado em Belo Horizonte no mesmo ano.
INTRODUÇÃO. Nos dias atuais, nota-se que a temática juventude retoma o ambiente de discussão em diversos níveis, sendo recorrente em falas sobre cultura, emprego, sexualidade e inclusão. Não diferente, as Ciências Sociais ensaiam um retorno ao tema, ainda um pouco tímido porém necessário.
Neste artigo, pretende-se discutir as questões relativas à afiliação partidária entre os jovens, observados em três diferentes partidos na cidade de Piracicaba (interior de São Paulo), quais sejam o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) – sob o signo institucional da União da Juventude Socialista (UJS) –, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Nesta pequena amostra, temos representados os dois partidos de maior expressão no cenário político atual (PSDB e PT), além do partido de maior expressão entre os movimentos estudantis (PCdoB) – este último dado constatado pela relevante presença da UJS nas principais direções executivas dos movimentos estudantis.
O estudo é uma reflexão sobre a relevância que estes grupos juvenis têm com relação a formação social e política dos jovens, buscando perceber os símbolos que compõem este universo, os motivos incentivadores da busca pelo grupo e as características singulares da vida partidária mediante outras possibilidades de agrupamento. Através destes objetivos, busca-se traçar o perfil da juventude que busca nos partidos políticos uma forma de interpretação e atuação na sociedade a que pertencem.
Também foi incentivador do desenvolvimento deste trabalho a recorrente idéia de que os agrupamentos partidários juvenis passam por uma crise e esvaziamento de contingente, perdendo espaço para os movimentos culturais e religiosos.
JUVENTUDE E CIÊNCIAS SOCIAIS. Apesar do tema ter retomado o corpo das discussões na sociedade brasileira, dentro das Ciências Sociais sua presença ainda é tímida e limitada. A questão juvenil, nos últimos tempos, tem sido delegada para outras áreas do conhecimento que, dependendo da abordagem metodológica, dão margem a interpretações preconceituosas, etnocêntricas e unidisciplinar.
Por vezes, a questão é encarada apenas sob o olhar da Pedagogia, tratando a juventude como assunto meramente educacional. Sim, a educação é um processo presente e de imensurável importância para se estudar aquilo que cerca a problemática juvenil, contudo esta educação ultrapassa os muros institucionais da escola, sendo pois influenciada pela família, igreja, grupos sociais, etc. Em outras palavras, a educação é um processo de socialização que envolve a formalidade estruturada e a informalidade das relações sociais, sendo portando uma preocupação também das Ciências Sociais.
Em outras oportunidades, os questionamentos sobre o tema são delegados à Psicologia. Sem descartar as contribuições que esta área do conhecimento tem dado para se entender o ser humano, sua utilização como única forma explicativa, por diversas vezes, confere à questão um aspecto puramente patológico, conotando a idéia de crise da juventude. A área relaciona suas análises mais ao indivíduo do que ao seu grupo, e ao se pensar unicamente através da ótica psicológica, pode-se chegar, dependendo do que se objetiva, a um resultado fragmentado, fruto de um enfoque que separa a questão do todo que a envolve, descontextualizando o jovem de sua história e da própria sociedade.
Longe de se defender uma suposta supremacia de uma área do conhecimento sobre outras, o que se busca com estas críticas é a volta da preocupação das Ciências Sociais com as questões sobre a juventude, não de uma forma arrogante, com ares de auto-suficiência teórica, mas sim através da constante troca com todas as áreas correlatas, no esforço de romper com tal fragmentação em busca de uma junção muldisciplinar (ou multivisionária), de um trabalho horizontal e complementar entre as diferentes formas de abordagens e observações.
JUVENTUDE E CONCEITUAÇÃO. A juventude é um fenômeno tipicamente humano e característico das sociedades modernas e industriais. Caracteriza-se basicamente como o período de transição da fase infantil para a adulta, num fenômeno várias vezes identificado como problemático, cercado por inúmeras transformações de âmbito físico, psicológico e social.
É bastante recorrente uma idéia de crise da juventude, comum em discursos ideologicamente dominantes do mundo adulto, o qual considera o jovem como um ser incompleto e em fase de “amadurecimento”. É, sem dúvida, um pensamento evolucionista e etnocêntrico, que considera a fase adulta como ápice da vida humana, implicando na idéia de que o indivíduo que se encontra “mal adaptado” à estrutura pré-estabelecida não pode ser considerado adulto.
O contraponto a esta abordagem é a interpretação da juventude como a etapa na seqüência de vida dos indivíduos em que ocorre uma ruptura com as formas características de relações sociais típicas do mundo infantil e se constroem novas relações sociais visando a autonomia própria do mundo adulto, sem considerar, no entanto, que este último seja melhor ou pior que outros pertinentes a momentos distintos da vida. Este enfoque abre precedentes para considerar o ser humano como um ser em constante transformação e em busca de significados que lhe dêem subsídios para entender tanto o mundo que o rodeia como a si mesmo. Soma-se que, como grupo específico, a juventude é repleta de símbolos e significações específicas que lhe dão identidade própria e são criadas por aqueles que a ela pertencem.
Para melhor orientação do pensamento, entende-se a juventude como uma categoria social.
Ao ser definida como categoria social, a juventude torna-se, ao mesmo tempo, uma representação ou criação simbólica, fabricada pelos grupos sociais ou pelos próprios indivíduos tidos como jovens, para significar uma série de comportamentos e atitudes a ela atribuídos. Ao mesmo tempo, é uma situação vivida em comum por certos indivíduos (GROPPO, 2000, p.7-8).
Ao considerar esse período da vida como categoria social, respeita-se também o fluxo e o sentido de pertencimento que os membros dos grupos identificados como juvenis têm com relação às etapas de vida infantil e adulta, além de, é lógico, suas condições atuais.
Tendo posto, é notório que para a construção de sua própria identidade, o jovem procura seus pares em grupos e organizações com características específicas – sejam eles institucionalizados ou não –, as quais devem ir ao encontro de suas expectativas e anseios. A busca de sua distinção em relação à infância é feita através da aglutinação junto àqueles que lhe parecem próximos nas idéias, no comportamento, enfim, no estilo de vida que se tem ou se deseja ter. Essa proximidade é condicionada (e escolhida) segundo a concordância relacionada aos símbolos de cada grupo, sejam de ordem étnica, política, cultural, religiosa, etc., revelando uma certa necessidade que o jovem sente no momento da procura pelos seus pares. Tais necessidades de ordem identiditária e distinta, desemboca nas relações sociais que constituirão, durante a juventude, a formação de uma autonomia adulta, via de regra, pela participação em grupos e pela interação que neles se configura. Isso não quer dizer que estas sejam as únicas responsáveis pela formação da autonomia do indivíduo adulto, apenas fazem parte do complemento de um todo social, marcado pelos relacionamentos oriundos de uma infância e os que serão somados numa nova etapa, com a troca simbólica com novos indivíduos ao longo da vida adulta.
JUVENTUDE E PARTIDOS POLÍTICOS. Para consolidar sua participação política na sociedade, os partidos políticos necessitam não apenas de quadros formadores, mas também de novos quadros que dêem seqüência a seus projetos e programas. Assim, ao aceitar a filiação de jovens, e organiza-los de forma especial – formando as juventudes partidárias – ele tem algum interesse com relação a tais indivíduos e utiliza um programa especificamente a eles dirigidos para alcançar determinados objetivos.
Independente da orientação política que seguem, seja a direita mantenedora do status quo ou a esquerda contestadora, os partidos políticos modernos têm tido a preocupação de aglutinar seus jovens em grupos, visando utilizar a dita “força da juventude” na luta pelos ideais concernentes aos do partido. E apesar da juventude se fazer presente na maioria dos partidos políticos, há uma tendência de senso comum que acredita que ela é uma fase de “rebeldia” contra as instituições e, por isso, a procura por partidos de mudança e de contestação ao sistema vigente é quase que unânime. Mannheim (1968, p.74) já dizia que “a juventude não é progressista nem conservadora por índole”, e por mais que o mesmo autor afirme que as sociedades estáticas tendem a confiar na experiência dos velhos em contraposição às sociedades dinâmicas, que tendem à cooperação dos mais jovens (ibdem, p.72), tal explicação é insatisfatória, pois não explica a presença dos jovens nos partidos cujo discurso e a história não demonstram propostas de mudança social, tampouco a forte presença de jovens em movimentos ultra-conservadores como os nazista da Alemanha de Hitler[1].
Neste trabalho, os jovens procurados pertencem a partidos distintos em ideologia e história, e se apresentam da seguinte forma:
– PCdoB: o partido mais antigo dos pesquisados, com data de origem registrada em 1922. Organiza sua juventude sob o signo da União da Juventude Socialista (UJS) e comanda as principais direções do movimento estudantil (notoriamente a União Nacional dos Estudantes e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, respectivamente UNE e UBES);
– PSDB: partido de grande expressão nacional. Sua história é recente, com seus atos de fundação datado em 1988. Também é recente sua organização juvenil, idealizada e fundada em 1999; e
– PT: também de história recente, com fundação em 1980. Sua juventude é organizada dentro do próprio partido e se apresenta como maior adversária na luta pela direção das entidades do movimento estudantil.
As entrevistas foram realizadas na cidade de Piracicaba, interior de São Paulo, entre os meses de abril e novembro de 2004, e deles pode-se retirar as impressões que seguem abaixo.
SEGUINDO A VOZ DO JOVEM. É necessário dizer, antes de demonstrar as impressões e análises obtidas através da pesquisa, que ao tratar a juventude como uma categoria social na qual a simbologia e significação do que a rodeia emergem como parâmetros para sua própria delimitação, além de se debruçar nas falas dos jovens como caminho para a análise do tema, condição do subjetivo foi elevada a um patamar de relevância ímpar. Esta subjetividade que para vários estudiosos parece uma trilha obscura e perigosa, no presente trabalho foi quem deu vida à teoria e concretude ao pensamento juvenil, esclarecendo pontos que se perderiam na superficialidade da observação à distância.
Apesar de muitas vezes censurados por sua própria condição partidária, que de início levava a respostas demoradas, rebuscadas e embaraçadas, eles de modo geral portaram-se de forma segura, demonstrando suas significações para com o tema. A repulsa ao gravador, a desconfiança e a timidez provocadas no começo do contato, era substituída pelo bom humor, pela lembrança comovente sobre o passado, pela segurança de quem fala sobre si mesmo e sobre o seu grupo. Apenas os de filiação mais recentes relutaram no trato de suas relações pessoais e sobre os aspectos mais subjetivos, defendendo-se atrás de uma muralha construída pela retidão de seus apontamentos.
E por falar em grupo, o dicionário Aurélio o define como “pequena associação ou reunião de pessoas ligadas para um fim comum”, definição insuficiente diante do que foi demonstrado. Para os jovens, o grupo do qual fazem parte é muito mais que um encontro entre pessoas, é um lócus de interação e aprendizagem, local de convivência em que não só os fins são convergentes, mas também os símbolos de diferenciação grupal e de identidade coletiva. Nestes grupos, a significação transcende a discussão política e passa a ser balizada pela coerência que as significações coletivas têm em consonância às suas buscas pessoais, passando necessariamente pelas questões não apenas de cunho político-ideológico, mas também de pertencimento, de amizade, de laços tão fortes entre seus integrantes que esbarra na imaginária fronteira entre a amizade e a fraternidade. E realmente se torna difícil falar em família quando se imagina que a casa é o lugar onde as pessoas sentem-se bem, seguras e à vontade. Desta forma, o espaço partidário é local de construção de identidade dos jovens quando estes lá enxergam o seu próprio lar. Não raro foram as intervenções que declaram que os partidários respiram política, vivem política, passam mais tempo em reuniões e no partido do que em sua própria casa. Não raro os casos em que a casa, local de construção identitária, já não mais é o espaço que se divide com a família.
Mas a família não é deixada em segundo plano, nem jogada para fora das explanações como um produto descartável ou uma determinante não mais influente durante a juventude. Ao contrário, é um dos fatores de maior influência na filiação partidária, ligando a história familiar aos questionamentos pessoais. Pais e mães, avós e demais parentes, todos envolvidos no jogo social que é identificado com a política, nem que sejam apenas relacionados a eleições e direcionamento do voto. Por mais que busquem romper com a influência familiar, a ruptura não se dá sem marcas indeléveis, que não chegam a definir, mas são uma das determinantes mais influentes dentro das escolhas juvenis, tatuagens perenes da personalidade individual que serão compartilhadas em âmbito coletivo. Nas escolhas juvenis sobre seu grupo, influi no caso partidário o questionamento político sim, mas este em menor âmbito, pequeno se comparado à importância que é dada aos aspectos de relacionamentos. Voltando aos laços de amizade, na maioria dos casos são eles que definem a permanência dos indivíduos, bem como são as ações coletivas que marcam a lembrança de uma vida construída de forma conjunta. Corajosamente, alguns membros de partidos chegam a afirmar que o primeiro critério é a questão de sociabilidade. Outros mostram na sutileza de suas lembranças, constituídas nunca por momentos de felicidade ou tristeza individual, mas sim, repletas pelas ações construídas dentro do grupo.
Sobre estas condições de sociabilidade e a visão de mundo que é passada através de seus posicionamentos, vemos os jovens partidários construindo-se como indivíduos no sentido definido por Agnes Heller (apud. PELISARI, 2002.), ou seja, como seres que rompem com a alienação da sociedade e reconhecem suas necessidades particulares dentro das necessidades coletivas, assim enxergam-se como seres genéricos, do mundo, comunitários. Daí toma corpo a importância das Juventudes Partidárias como instâncias incentivadoras para que os jovens se constituam como cidadãos críticos e comprometidos com a coletividade.
A organização e o funcionamento das juventudes é questão que só pode ser entendida mediante a contextualização histórica de seus partidos de influência. A UJS, por exemplo, pode ser tratada como a mais tradicional se comparada sua prática histórica com as demais instâncias estudadas, porém seu aspecto mais relevante é a própria consideração do Partido Comunista do Brasil como sendo um partido basicamente formado por jovens – o que se comprova diante do âmbito em que pairam as conquistas e maior influência deste partido, qual seja o movimento estudantil. Já a JPSDB é a mais difícil de se definir, provável reflexo de duas variáveis. A primeira é a sua recente fundação (1999) e introdução dentro das disputas juvenis, a segunda, a própria história de seu partido de referência, claramente fundado em um movimento direcionado no sentido dos quadros políticos consolidados para a massa, o que não se vê, por exemplo, na JPT, em que a influência histórica partidária tem sentido diametralmente oposto, ou seja, seu partido foi fundado das massas – principalmente dos movimentos sociais – para os quadros.
E dentro destes partidos, a juventude não pode ser tratada como peça de reposição ou simples massa de manobra. Eles querem e podem mais. A renovação partidária deve realmente passar pela a construção endógena de quadros políticos, mas estes devem ser considerados desde o seu início, desde a sua mais tenra idade militante. Tal consideração deve ser relativa àquilo que os jovens têm a oferecer, ou seja, o seu vigor e esperança, sua crítica nova e sua nova visão de mundo. Todo militante tem capacidade de contribuir e com os jovens não pode ser diferente. Uma adequação ou adestramento do pensamento juvenil, que trilhe seus passos na direção de submetê-los à aceitação de paradigmas consolidados nos partidos e que, por isso mesmo, colocam-se num patamar intocável e de crítica inadmissível, é confirmar as hipóteses de que “a política (...) continua integralmente nas mãos do que chamamos a velha guarda. E, embora dirigindo à juventude discursos muito cordiais e por vezes muito lisonjeiros, os velhos a guardam ciumentamente seu monopólio”. (TROTSKY, 1968, p.32).
Neste mesmo sentido, pode-se identificar o jovem ainda como sendo um dos grupos de excluídos políticos. Interessante também notar o fato de que poucas são as mulheres participantes da militância política, bem como os negros que sequer foram identificados dentro da amostra utilizada na pesquisa. Outros grupos também identificados como minorias políticas, praticamente inexistentes. A quem tem sido direcionada a política partidária? A juventude chama atenção para a diversidade, mas onde encontrá-la dentro dos partidos? Somente nas idéias, ideologias, pensamentos e coligações?
Quanto às críticas normalmente feitas aos jovens, sobretudo no que diz respeito às ações de movimentos como o estudantil, principal foco da análise e dos apontamentos feitos por estudiosos e outros indivíduos que se arriscam a falar sobre as atitudes políticas deste grupo, é necessário que sejam feitas despidas do arcabouço do senso comum e, se não sob o olhar científico, ao menos sob a luz da contextualização histórica. No momento atual, em que o tempo é mercadoria e a sociedade impõe velocidades cada vez maiores para as ações cotidianas, o jovem se vê dentro de um jogo em que assume diversos papeis sociais, ora como estudante, ora como trabalhador, ora como partidário, enfim, a cada momento novo, um novo papel com determinações e obrigações diferenciadas. Este tempo é parte da queixa entre os vários envolvidos no trabalho, um tempo construído por uma sociedade de consumo que consome até mesmo a possibilidade de entrega total e irrestrita às lutas partidárias e aos movimentos relacionados à sua categoria. Não se vive mais sob uma ditadura que explicita a censura e nega direitos de forma gritante. Vive-se num estado em que o individualismo é sobreposto à coletividade, em que a ânsia de sobreviver dentro da selva capitalista é mais presente do que a possibilidade de se empreender mudanças que com ela rompam. Por isso, dizer que o movimento não é mais o mesmo, não tem a mesma força, está morto, é inexistente ou inútil, é agir de forma negativa com relação à ação e possibilidade de manifestação e conquistas juvenis. É concordar que a organização coletiva não cabe mais dentro do espaço de lutas, e que a idéia do “cada um por si” é a decisão acertada do presente momento. Por isso, acredita-se que o movimento estudantil – bem como todo e qualquer movimento empreendido por jovens – deve ser criticado em sua prática e sua contemporaneidade, e não negado veemente, numa nostálgica tentativa de se ter manifestações que só se encaixam em contextos passados.
Considerando um possível afastamento juvenil das instituições partidárias, deve-se considerar que no contexto contemporâneo este fenômeno não é característico apenas desta categoria social, mas sim da sociedade como um todo. O esvaziamento tem sido identificado dentro das tradicionais formas de agrupamento participativo, tais como os partidos políticos, associações de bairro, sindicatos e outras formações do gênero. Por mais que haja uma certa tendência de identificar este conjunto de fatos como sendo resultado de uma cultura consumista que, em última instância, desemboca na individualização exacerbada e enfraquecimento dos relacionamentos sociais, é importante atentar-se à observação de que o esvaziamento da participação citado tem suas bases fundadas nas tradicionais formas de participação política, enquanto que por outro lado crescem as formas de manifestações coletivas em formas alternativas, culturais sobretudo dentro do que se entende como juventude.
Estas novas formas de participação coletiva, de cunho contestatório, reivindicativo, crítico e político, tem sido mais sedutoras dentro da realidade contemporânea, e não podem ser consideradas, de forma alguma, com objetivos menos “nobres” que as agremiações partidárias. Ao contrário, este fenômeno pode ser lido como uma crítica feita pelos jovens – e até mesmo pela sociedade como um todo – à forma organizativa das Juventudes Partidárias, pois a criatividade destas novas alternativas de agrupamento configura-se como o sangue novo que oxigena as veias da vida coletiva, em reinvenções participativas simbólicas e concretas dentro do cotidiano dos grupos. E a leitura crítica torna-se mais preocupante aos partidários quando grande parte da sociedade e dos estudos sobre a participação política juvenil aceitam a afirmação de que os movimentos culturais crescem quantitativa e qualitativamente enquanto que o partidarismo juvenil definha.
Não se trata de fazer previsões nefastas e catastróficas sobre a extinção deste tipo de instituições. Trata-se de um alerta preocupado, feito quando se acredita no potencial que pode ser desenvolvido dentro da associação partidária. As sociedades são dinâmicas e exigem, por vezes, mobilidade e maleabilidade das instituições que nela se encontram, portanto é equivocada uma atitude conservadora diante às transformações. A organização e as estratégias partidárias serem estáticas é um erro cujo preço é bastante oneroso a qualquer bolso partidário.
[1] Ver: Juventude e nazi-facismo. In. GROPPO, L. A. Juventude: ensaios sobre sociologia e história das juventudes modernas. Rio de Janeiro: DIFEL, 200. 308p. (Coleção Enfoques. Sociologia).