domingo, 6 de fevereiro de 2011

O bibliotecário

Tal fue la primera intrución del mundo fantástico en el mundo real

(Tlön, Uqbar, Orbis Tertius)


I.


Um jovem1 busca escrever um ensaio sobre um escritor de ensaios sobre literatura. Tarefa árdua a que se dedica com afinco, suor e dúvidas, muitas dúvidas. A intenção é um estudo comparativo sobre, a princípio, duas obras2 de um determinado autor – que por hora daremos o nome hipotético de Borges –, para o qual já lhe foi imposta a dificuldade de não se tratarem estes textos elegidos de ensaios sobre teoria literária, senão contos fantásticos3. Por sorte – pelo menos foi esta a sua impressão – ou artifício da bibliotecária que lhe orienta em Babel4, a primeira cifra aparente lhe foi dada pela espiral da nota de rodapé de Ficções, ligadura introdutória ao Livro de areia.


Letizia Álvarez de Toedo ha observado que la vasta Biblioteca es inútil; en rigor, bastaría un solo volumen, de formato común, impreso en cuerpo nueve o en cuerpo diez, que constara de un número infinito de hojas infinitamente delgadas (…) El manejo de ese vademecum sedoso no sería cómodo: cada hoja aparente se desdoblaría en otras análogas; la inconcebible hoja central no tendría revés.

Mas o cíclico movimento do universo – se é que seja um movimento propriamente dito – lançou-lhe noutra espiralada escada que ligava um andar a outro de sua própria biblioteca – que pouco se diferencia de todas as outras bibliotecas e que, por extensão, nada mais é que um outro hexágono da Biblioteca – e, de volta ao princípio, emperrou-o na dúvida. Estava então e agora perdido naquele lugar à direita de um pátio, em que o autor, aproveitando-se do descuido dos funcionários, largou seu próprio livro de autoria alheia “numa das úmidas prateleiras”.

Confuso dentro deste labirinto, buscou de livro em livro um alívio que pudera ser imediato, sem perceber que era esse imediatismo temporal o que lhe atrapalhava. Pensava em sequências quando devia pensar em percepções e saber que tudo aquilo que lá existia, até mesmo o que existia fora de lá, só era possível através de sua própria percepção. Não se via como o próprio autor, que é um único e todos ao mesmo tempo – o tempo da leitura5; e não se percebia diante de um espelho do mundo.



II.

A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão a ponto de dizer algo; essa iminência de uma revelação que não se produz é, quem sabe, o fato estético

(In. A muralha e os livros)


Já tinha se percebido num labirinto e que a saída deste dependeria apenas de si mesmo como leitor. Assim, percorreu a biblioteca com a sua própria biblioteca na cabeça, buscando explicações a partir daquilo que grandes lhe sopraram ao ouvido ou projetaram em seus óculos. Pensou um pouco e analisou o local: uma biblioteca com andares hexagonais. Guardou a informação em algum canto da memória. Outras referências: lembrava-se de terminologias (weltiliteratur, literatura comparada, mise en abyme6, literatura fantástica, etc.) e nomes (Arrigucci, Olmos, Cervantes, Hume, Berkeley, Jauss, etc.). Procurou por esses para lhes solicitar apoio. Deu-se, então, o (re)início dos conflitos.

Iniciado pela noção de mise en abyme, lembrava-se de que esta pressupunha a introdução de uma obra de arte dentro de outra obra de arte, como na percepção de uma criança diante uma lata de biscoitos que traz ilustrada em seu rótulo uma lata de biscoito, abrindo uma sequência de repetições desta mesma figura com projeção ao infinito. Não era necessariamente uma novidade, pois já havia percebido esta dinâmica em Withman e Balzac, os quais se prestaram a narrativas (notoriamente produções artísticas) que contavam sobre outras produções artísticas. Ainda assim, não era necessariamente o que havia em suas mãos, uma vez que aqueles lhes mostravam a literatura discutindo as artes plásticas ou a música. O que possuía era a literatura discorrendo sobre si mesma, sobre sua feitura. E teve sua primeira epifania: “Al procedimento pictórico de insertar un cuadro en un cuadro, corresponde en las letras a de interpolar una ficción en otra ficción.”(BORGES, 2007, p.532).

Olhou ao redor seu redor... Recompôs-se e continuou...

A noção vertiginosa desta repetição ao infinito o fez abrir o leque de possibilidades de sua manifestação. Em primeiro lugar, uma relação estreita entre escritor, personagem e leitor – a qual lhe pareceu que deveria ter sido percebida quando posto frente ao Cervantes que julga e critica Cervantes em Don Quijote. “Tais inversões sugerem que, se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios”. (BORGES, 2007, p.65).

Depois, uma extensão do conceito que apontava para a interpretação daquele lugar como metáfora para o mundo, um espelhamento deste. Assim, apoiado pela voz de outros tantos, pode ver que

O mundo, segundo Mallarmé, existe para um livro; segundo Bloy, somos versículos ou palavras ou letras de um livro mágico, e esse livro incessante é a única coisa que há no mundo: melhor dizendo, é o mundo. (BORGES, 2007, p.136)

A junção de ambas as noções lhe custou mais trabalho, contudo pode perceber a Biblioteca como uma metáfora para o próprio mundo. A diferença entre mundo e ficção seria muito estreita. Na verdade, as explicações sobre o mundo, sua origem e materialidade, nada mais são do que enredos fantásticos de um livro único e infinito, tão eterno quanto a areia. Livro este escrito por todos os escritores – não há um autor especificamente, tudo faz parte de um mesmo conto, romance, poesia... uma mesma literatura feita por um escritor/entidade, somatória de todos escritores (passados, presentes e futuros).


III.

¿Cuál de los dos escribe este poema

de un yo plural y de una sola sombra?

¿Qué importa la palabra que me nombra

si es indiviso y uno el anatema?

(In. Poema de los dones)


– Então a Biblioteca é formada por todos os homens e estes são os escritores?

– Que bom que te questionas, meu caro. Atitude cara à literatura fantástica, já que retoma gregos de outrora. Ainda que uma resposta exata não seja simples, talvez impossível, tentemos aclarar a escuridão. Já sabemos que a Biblioteca nada mais é que uma metáfora para o mundo. Correto?

– Sim.

– Pois bem, ela só existe a partir daquilo que percebemos como Biblioteca e é também por isso que ela pode ser identificada dentro daquela metáfora. Assim, só podemos entender as coisas do mundo quando as percebemos. “A maçã não pode ter gosto por si mesma – nem na boca de quem come. É preciso um contato entre elas.” (BORGES, 2007, p.12).

– Exatamente.

“O mesmo acontece com um livro ou com uma coleção deles, uma biblioteca. Pois o que é um livro em si mesmo? Um livro é um objeto físico num mundo de objetos físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então aparece o leitor certo, e as palavras – ou antes, a poesia por trás das palavras, pois as próprias palavras são meros símbolos – saltam para a vida, e temos uma ressurreição da palavra” (op. cit).

– Então a literatura não é produto de escritores?

– A literatura nada mais é que a arte produzida pelo leitor, só existe na materialidade que o leitor lhe dá. Sem leitor, é um objeto morto no espaço. Com o leitor, ela se realiza, vive, e é recriada segundo suas experiências e vontades. A literatura não é arte da escritura, mas sim a arte da leitura.


IV.

O outro me sonhou, mas não me sonhou rigorosamente. Sonhou, agora o entendo, a impossível data no dólar

(In. O outro)


Eis uma previsão:

Não tardará o dia em que nosso bibliotecário acordará e perceberá que tudo foi um sonho. Melhor, é provável que desperte e não saiba se sino douto ou lepdóptero. Em dúvida, talvez perceba que fora criado por seus precursores e que também os criou através da bicicleta dos seus óculos. E, se diante disso, terá sua vista dilatada e compreenderá a weltliteratur não como um compêndio de fulano que leu cicrano, mas como um real contato entre as diversas culturas, artes, sua própria arte e filosofia.


As invenções da filosofia não são menos fantásticas que as da arte”




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ARRIGUCCI JR, D. “Borges ou do conto filosófico”. In: Outros achados e perdidos. São Paulo, Companhia das letras, 1999.

BORGES, J.L. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

__________. Ficciones. Madrid: Alianza Editorial, 2009.

__________. O fazedor. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

__________. O livro de areia. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

__________. Outras inquisições. Tradução de Davi Arrigucci Jr.. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

OLMOS, A.C. “Um retrato do artista” e “Um ensaio de leitura: o livro infinito” In: Por que ler Borges. São Paulo, Globo, 2005.





1Porque o termo jovem não perdura numa biblioteca de forma imutável.

2E ainda mal sabe o pobre coitado que comparará uma mesma obra, ainda que busque a ilusão da existência de outros autores no universo.

3Novamente, um pobre coitado inocente.

4Nem sempre os bibliotecários de Babel são fáceis de ser encontrados ou identificados. Houve um para o qual criaram um culto por conhecer o exemplar fundamental de todo conhecimento, mas não há provas suficientes sobre sua existência, tampouco do livro que teria lido e escondido em um dos tantos hexágonos da Biblioteca.

5Todos los hombres, en el vertiginoso instante del coito, son el mismo hombre. Todos los hombres que repiten una línea de Shakespeare, son William Shakespeare”.

6Para qual preferiu mais tarde “ficcíon en outra ficción”.

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