domingo, 6 de fevereiro de 2011

Murilo Mendes em suas próprias constelações


convicto de que acima das igrejas, dos partidos, das fronteiras, todos os homens conscientes, em particular os escritores, devem unir-se contra a guerra, a massificação e a bomba atômica.

Roma, 14-2-1970

Murilo Mendes



O poeta escreverá, portanto, para manifestar suas constelações próprias.

Murilo Mendes




Partindo do pressuposto de que ler a obra de um autor é perceber a sua mitologia própria, constituída por suas imagens, estilos, etc., busca-se neste brevíssimo ensaio perceber como as constelações murilianas se fazem presentes em sua poética. Assim, através do contato entre os escritos críticos do autor, somados a apreciações críticas oriundas de estudos acadêmicos, pretende-se perceber como tal poeta entende o seu fazer poético e como este se concretiza dentro de sua criação – a saber, usaremos aqui o poema Choques para tal constatação.



Para analisar a obra de Murilo Mendes, não nos cabe uma abordagem tradicional em que a formalidade técnica esteja latente e aparente. A obra deste poeta nos transporta a uma realidade não imediata, nos obriga a sair de uma possível zona de conforto propiciada pelas tradições literárias a ele anteriores, e nos lança, ao menos inicialmente, ao objetivo de perceber a “própria articulação da linguagem poética” (Candido, p.81). O próprio autor reconhece este movimento como caro à sua obra conceituando o fazer literário não como um fim em si (a arte pela arte), mas sobretudo como um meio de comunicação escrita, uma técnica de comunicação. É também através desta percepção que chegamos a uma configuração da persona do poeta, sua configuração pessoal, inegavelmente presente e aparente em seus escritos artísticos e que, por refletir um homem imerso em um mundo específico, em um momento histórico específico, está intrinsecamente envolvida num todo social que lhe é contemporâneo.

Logo, levando-se em consideração o objeto aqui analisado – qual seja o poema Choques –, é necessário contextualizar o momento de sua produção e publicação. Este poema consta do livro Poesia e Liberdade, reunião de escritos produzidos entre 1943 e 1945 (publicados em 1947), período conturbado em âmbito nacional (sob a égide da ditadura do Estado Novo) e, principalmente, em nível internacional, com a presença nada imperceptível dos horrores causados pela II Guerra Mundial. Já este ponto nos esclarece a matéria central do poema analisado, a qual nos revela um poeta dialogando com sua contemporaneidade e delatando os choques provocados pela situação bélica instituida, notoriamente clara nos usos de temos como aviões de bombardeio ou ditador sentado na metralhadora.

Contudo o diálogo de Murilo Mendes com seu tempo não se dá apenas na matéria do poema, mas sobretudo em sua atitude frente o fazer poético. Bebendo nas fontes da vanguarda artística típica do modernismo, o poeta busca


a aproximação de elementos contrários, a aliança dos extremos, (...) o poema como um agente capaz de manifestar dialeticamente essa conciliação, produzindo choques pelo contato da ideia e do objeto díspares, do raro e do quotidiano etc. (MENDES, p.178).


É assim, por exemplo, na criação de imagens como a tempestade calcula ou armário que, inalterável, rumina. Este tipo de construção de imagem é bastante comum em produções que se pautam no surrealismo. É desta corrente artística que ele absorve procedimentos de colagem (montagem), notoriamente combinatórios, junção de imagens muito distantes para formar uma terceira, o encontro fortuito entre um guarda-chuva e uma máquina de escrever sobre uma mesa de dissecação de cadáveres. O artista, então, é compreendido como um centro de relações, o agente unificador entre imagens distantes.

Mas é também necessário levar em consideração a condição cristã do poeta convertido à fé católica. Longe de cega ou dogmática, sua cristianidade se revela na construção de uma poética que aponta para a transcendência. É no mínimo curiosa a somatória de catolicismo com surrealismo, pontos diametralmente distantes. Contudo, por um lado esta soma aponta para aquela aproximação inusitada anteriormente dita. E, por mais contraditória que possa parecer, podemos aliviar esta tensão percebendo que, de um lado, o surrealismo prega a transformação do mundo e, de outro, o catolicismo revela a vontade de transcendência. Assim, o autor aponta para um desacerto do mundo (sobretudo neste momento em que se depara com um ambiente de guerra) e, a partir da união insólita de imagens distantes, busca a comunhão do homem profanado por tal situação. A visão religiosa de Murilo Mendes prevê a humanidade como um corpo único cuja a cabeça é Cristo; logo, a guerra que coloca homens contra homens, separando-os de sua totalidade, é a profanação do todo divino. Em última instância, a dimensão cristã é o que faz com que o poeta afirme “que a poesia deve propor não só um conhecimento, mas ainda uma transfiguração da condição humana, elevando-nos a um plano espiritual” (Ibidem9, p.179). É exatamente este o movimento perceptível ao final do poema, com a pomba mirando a liberdade do horizonte.

Tendo posto estes preliminares apontamentos acerca da poética muriliana, olhemos mais atentamente para o poema para que seja possível melhor visualizá-la e, a medida do possível, ampliá-la.

Desde o título, o poema parece propor uma tensão violenta entre situações contrárias. O choque é dado sempre entre imagens de âmbito positivo (seja por conta da religiosidade ou do poder de transformação que carregam em seu âmago) e outras de mote negativo (seja pela passividade, seja pela situação de guerra). Acredita-se que esta tensão deve ser necessariamente violenta porque, em primeiro lugar, revela a configuração mundial em um estado bélico e, em segundo plano, aponta para a tendência político-ideológica que se apresentava como alternativa ao status quo, qual seja a transformação social através da implantação do sistema socialista1. Tem-se, então, nos primeiros dois versos, o choque violento entre os pensamentos furiosos, provavelmente provocados por uma discordância em relação à guerra, e a atitude em nada ativa dos outros que permanecem sem expressar-se física ou verbalmente frente a tal situação. Sucede-se a tais versos a tensão entre a religiosidade e a guerra (O choque dos cerimoniais antigos / Com a velocidade dos aviões), a transformação social proposta pelos ideiais socialistas (O choque da foice contra o cristal dos milionários) e, por fim, a não presença de boas notícias em relação ao silêncio das cidades abandonadas (O choque das roseiras emigrantes com o silêncio das linhas retas), completando assim o que aqui chamamos de primeiro momento do poema.

Antes de passar para a análise da segunda parte, chama a atenção o uso e construção da imagem “roseiras emigrantes”. Acredita-se que a análise isolada de tal composição seria suficiente, mas ao perceber sua recorrência, tem-se em mãos um instrumento para melhor compreensão desta mitologia muriliana. Em livro anterior, pode-se ler a seguinte passagem:


(...)

Acompanhado pelas rosas migradoras

Apascento os planos que gritam

E transmitem o antigo clamor do homem


Que reclamando a contemplação

Sonha e provoca a harmonia

(...)

Comunica-se com os deuses.2


Neste trecho, as rosas, imagem recorrente para fazer menção aos ideais socialistas (A rosa do povo, a primavera dos povos, etc.), migram junto ao eu-lírico levando o grito que harmoniza a humanidade (a reconstrói como um corpo único e divino), o grito que transmite a vontade de comunhão humana e o faz entrar em contato com a transcendência. Esta mesma rosa, em Choque, posta em seu coletivo, não mais exerce seu movimento ao encontro do ser humano, mas está emigrando, saindo do espaço de enunciação do poema; ela deixa o local que agora está vazio de vozes, silenciado. Diria, o próprio autor, que “o adjetivo, (...) empregado com justeza recria o substantivo, e longe de se tornar um apêndice supérfluo, em muitos casos faz um bloco só com ele” (Ibidem, p. 178). É exatamente este preceito que pode ser aqui apreciado. Rosas migradoras, roseiras emigrantes. De um lado, o movimento ao encontro do homem para ajudar-lhe a vociferar suas ânsias; de outro, fuga ao homem, evitando seus silêncios por falta de esperança ou comunhão.

Já na segunda parte, as associações são mais surrealistas e causam tanto estranhamento quanto dificuldade de interpretação. É o momento em que se reforçam os apontamentos de Candido a respeito da necessidade maior de busca da articulação da linguagem poética quando defronte a um “poema livre”. Assim, o jogo entre claro/escuro, luz/sombra, movimento/passividade, trancendentalismo/imediatismo e coletivo/indivíduo demonstram, de uma maneira mais surrealista, o mesmo movimento da primeira parte, o choque violento entre os pólos positivos e negativos. Estes casos dão-se, respectivamente, pelas construções de imagens como tempestade x lúcido farol, águias arredando a noite x armário que, inalterável, rumina, tempo x altar da eternidade e, por fim, multidão sacrificada x ditador sentado na metralhadora. Observa-se, então, uma reiteração da poética muriliana, com o autor fazendo-se centro de relações que une tão diferentes imagens para a construção dialética de uma terceira imagem combinatória.

O mesmo artifício poético é utilizado no encerramento do poema (Choca-se a guilhotina erguida pelo erro dos séculos / Com a pomba mirando a liberdade do horizonte), contudo, percebe-se um outro aspecto da poética de Murilo Mendes já citado no início do ensaio. Este aspecto diz respeito à posição do poeta quanto à função da poesia, qual seja a ideia de que ela deve cumprir um fim maior, a transfiguração da condição humana. Assim, em conjunção com seus preceitos católico-cristãos, o poeta usa a pomba (imagem ambígua por poder representar tanto a paz quanto o Espírito Santo – uma das três pessoas da Santíssima Trindade) para mostrar a direção em que está a esperança. Num futuro? Sim. Mas um futuro necessariamente ligado à transcendência, o homem no seu reencontro com o criador numa possível vida além da terrena.

Desconsiderando a petulância em querer dar conta de uma poética tão complexa em tão poucas linhas (questão que nem mesmo toda a fortuna crítica a respeito do autor conseguiu englobar em sua plenitude), espera-se ter demonstrado aqui como é que a mitologia pessoal de cada autor é capaz de ajudar o leitor na compreensão de uma obra poética. Centro de relações, aproximações inusitadas, transcendentalismo cristão e tantos outros pontos que poderiam denotar incoerência linguística, conceitual ou estética, aqui se mostraram como estrelas que compõem as constelações de genialidade de Murilo Mendes.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CANDIDO, Antonio. “Pastor pianista/pianista pastor”. In. Na sala de aula: caderno de análise literária. São Paulo: Ática. (p.81-95).

MENDES, Murilo. “A poesia e o nosso tempo”. In. CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira. Vol. III. Modernismo. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1975 (p. 176-181).

­­_______________. “Choques”. In. Poesia e liberdade. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001. (p.99)

MERQUIOR, José Guilherme. “À beira do antinunivverso debruçado”. In. Murilo Mendes: antologia poética. Brasília: Fontana. (p.11-22).


1 É necessário lembrar que, em Marx, a tomada do poder por parte do proletariado é necessariamente uma atitude violenta – o que, para este ensaio, não pode ser entendido como algo negativo, uma vez que é parte da ideologia adotada pelo prórpio autor.

2 O pastor pianista. In. Visionário.

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