sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

CONTRARIEDADES: Brevísssima análise sobre um poema de Cesário Verde

(Uma interessante tensão entre duas instâncias que brigam dentro de um mesmo homem. Foi doloroso pela dúvida da certeza de ainda ser capaz e pela insegurança de ainda não se sentir apto, mas os resultados foram bons e ajudam a serenar a alma - Dezembro de 2007)


CONTRARIEDADES

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
----- Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
----- E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
----- E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
----- Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, toma-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
----- Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
----- Me tem fechado a porta.

A critica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
----- Vale um desdém solene.

Com raras exceções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
----- Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
----- Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores. Arte?
Não lhes convém, visto que os seus leitores
----- Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
----- Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos
----- Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
----- E fina-se ao desprezo!

Mantêm-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente
Oiço-a cantarolar uma canção plangente

----- Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
----- Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
----- Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. E feia...
----- Que mundo! Coitadinha!

A observação atenta ao poema de Cesário Verde acima citado pode levar a frutíferas análises sobre a forma como o poeta tenta capitalizar simbolicamente sua obra e a si próprio. Antes, porém, será necessário um também breve passeio pela teoria sociológica para que se torne claro os pontos e posicionamentos a serem assumidos no presente trabalho.

Em Bourdieu tem-se que a sociedade usa do conceito de capital simbólico para definir um valor dado às coisas (incluindo o homem) que, em muitas vezes, transcende o valor de troca nelas embutidos. Os grupos não são, neste autor, representados apenas pela classe, mas sim (e especialmente) pelos campos. Neste sentido, a forma como o sujeito se apropria da natureza, como ele se “comporta” frente à organização do sistema de produção, não é o principal modo para identificar a qual classe (proletariado ou burguesia) pertence, a instância definidora é maior que a determinação histórica e/ou econômica, sendo pois determinada pela carga simbólica que a este sujeito é atribuída – o que não deixa de ser uma moeda de troca dentro da sociedade, ainda que não palpável.

Com relação aos literatos, temos então que considerá-los dentro deste esquema de valorização simbólica que a todos abrange, o que nos leva necessariamente à constatação de um campo específico de artistas e intelectuais, formado por tais tipos de produtores e que, necessariamente, está ligado ao grupo maior que detém o poder. O campo autônomo de intelectuais e artista passa a ser uma fração da burguesia que não necessariamente a representa, mas que intrinsecamente está ligado a ela. Um campo intelectual e artístico é a forma de atribuir valor a este grupo de pessoas que têm comportamentos produtivos e capacidades específicas dentro de um esquema maior, que é o próprio modo de produção. E, por mais autônomo que este queira transparecer – influindo os valores simbólicos, indicando quem são os que têm maior e menor valor dentro do campo ­–, ainda assim está estritamente ligado ao todo do grupo dominante, bem como à eterna relação e/ou tensão com as outras frações da burguesia.

(...) a condição básica consiste em construir o campo intelectual (por maior que seja sua autonomia, ele é determinado em sua estrutura e em sua função pela posição que ocupa no interior do campo do poder) como sistema de posições predeterminadas abrangendo, assim, como os postos de um mercado de trabalho, classes de agentes providos de propriedades (socialmente construídas) de um tipo determinado. (...) Quando se trata de explicar as propriedades específicas de um grupo de obras a informação mais importante reside na forma particular da relação que se estabelece objetivamente entre a fração dos intelectuais e artistas em seu conjunto e as diferentes frações das classes dominantes. (Ibidem, p.190-191)

Ao considerar o século de nosso poeta (XIX), vê-se que o campo intelectual e artístico conquista uma autonomia bastante relevante na sociedade, não há mais quem lhes estabeleça regras de forma direta. Contudo, internamente, há uma normalização de seus hábitos (formas de divulgação, pesquisa, produção, etc.). A briga pelo poder neste (e em qualquer outro campo autônomo) passa a ser interna.

Ao notarmos, ainda em uma perspectiva histórico-sociológica, a biografia de Cesário Verde (Reis, p.398), é perceptível alguns aspectos interessantes para iniciarmos a análise. O poeta é oriundo da fração comerciante da burguesia – ambiente pouco propício à criação poética –, não concluiu nenhum curso em nível superior e pouco conseguiu publicar durante a sua breve vida – não por falta de produção e sim de aceitação. O reconhecimento a Cesário Verde é póstumo, o que muitas vezes é indicado como fator intensificador de sua parca biografia conhecida.

Contrariedades é construído no momento em que “tendo adquirido a atitude de observação que permitira uma certa representação do espaço urbano, Cesário desenvolve e particulariza essa atitude” (Ibidem, p.402), mas acredita-se aqui que tal representação está mais ligada a uma auto-imagem, à construção de um eu-lírico descontente não só com a urbanização, mas sobretudo com a desconsideração por aqueles estão excluídos do sistema. Em outras palavras, o poeta demonstra o quanto ele próprio é simbolicamente valioso, à revelia da desconsideração que o seu próprio campo social lhe imputa, e utiliza-se das imagens dos populares como forma de ilustração de sua própria condição social frente à produção literária. Tentemos esmiuçar tal hipótese.

Na primeira estrofe do poema temos, de imediato, acesso ao sentimento predominante do eu-lírico durante todo o texto (cruel, frenético, exigente), denotando um posicionamento arredio frente a sua principal queixa (nem posso tolerar os livros mais bizarros). Os dois últimos versos são a concretização imagética deste estado de espírito. Essa lógica permanece na segunda estrofe e desemboca em uma curiosa descrição na terceira estrofe. O eu-lírico está em um escritório que fica a frente da casa de uma mulher pobre, endividada, doente e que muito trabalha para pouco viver. Sob este ponto, assume-se que, apesar da aura realista que perpassa grande parte da obra de Cesário Verde, este apelo ao nível social que no texto se demonstra é correlativo a uma identificação da própria voz do poema, um reflexo de sua imagem de excluído do campo de intelectuais e artistas refletida (ou simbolizada) na imagem daquela mulher excluída socialmente do grupo dominante da sociedade. Esta idéia se reforça na próxima estrofe em que é mostrada a rejeição que o jornal empreende contra a publicação dos versos do poeta. É neste momento em que fica mais clara a tentativa de valoração simbólica que Cesário faz neste poema. Nas estrofes posteriores falará da falta de sensibilidade (e competência) das redações que tanto o rejeitam, e do fim trágico que dá a suas produções, uma vez que de nada servem se não são publicadas – o que, por si só já indica a busca pelo mercado, ainda que não seja perceptível qual o mercado que o autor quer alcançar.

Mais claro se torna a tentativa de valoração simbólica nas estrofes de nona à décima segunda. Em primeiro lugar ele identifica seu público-alvo, os amigos e artistas, pertencentes e bastiões das regras de aceitação de campo intelectual e artístico, pessoas que o entendem em contrapartida (ou contradição) às pouco competentes redações. Esta pouca competência é constantemente reafirmada, dizendo o autor que a arte não importa ao editor, a ele é importante que seus leitores, não tão doutos ou hábeis quanto os artistas, não compreenderão aquela arte. Cesário se reveste agora de um arcabouço simbólico extremamente grande, embutindo a si mesmo o dom de fazer boas poesias em recusa a facilidade e pouco engenhosidade que as narrativas, segundo ele, têm ­– agora sim a demonstração de que não é qualquer mercado a que ele quer se inserir, mas sim o erudito. Conclui, então, que seus versos, de sentimentos finos e boa técnica, valem mais pela consciência da competência que o próprio autor tem sobre si – o que o acalma, mesmo sem resolver o problema daquela mulher pobre e moribunda, talvez por se ter certeza que ainda o seu próprio problema não tenha sido resolvido.

Tem-se, com essa brevíssima análise, um estopim de crítica que pretende perceber a lógica desta poesia não apenas pelo viés formal, mas também por sua relação com a sociedade em que foi produzida. O sujeito, no caso o poeta, busca incessantemente sua valorização simbólica frente aos seus iguais e, em última instância, frente ao todo formador da camada dominante do sistema de produção. Fato que, no presente caso, só obteve resultados “concretos” postumamente.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BOURDIEU, Pierre. Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva. (p.183-202)

REIS, Carlos. Cesário Verde: realismo e criação poética. In. História da literatura portuguesa. Vol.5. São Paulo: Publicações Alfa. (397-417)

VERDE, Cesário. Contrariedades. In. A biblioteca virtual do estudante de língua portuguesa. Disponível em: . Acessado em 19 dez 2007.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que delícia ese blog...Gosto por demais desse casamento entre sociologia e literatura.
Redescobri (p/além da seara do ensino médio)Cesário Verde no ano passado e só então notei a riqueza de sua poesia. A beleza quase gélida com que ele olha para dentro de si e para o entorno ao mesmo tempo. Belíssimo seu texto, parabéns!