sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

CORTÉS E FOUCAULT: Uma breve reflexão sobre a função autor

INTRODUÇÃO

Foucault (1997) apresenta uma instigante reflexão a respeito do autor contemporâneo, fazendo observações acerca de sua origem, características e funções, entre outros pontos de seu texto. Tal reflexão se torna instigante porque o próprio autor revela que sua intenção não é montar um arcabouço teórico estanque, mas sim, por à prova suas indagações e incitar a crítica ocidental a pensar sobre o assunto. Assim sendo, o presente trabalho traz uma breve análise sobre os termos levantados por este autor e, a fim de realizar uma reflexão a respeito da aplicabilidade de seus conceitos, compara tal teoria a um texto anterior à época atual, qual seja a Segunda Relación escrita pelo capitão espanhol Hernán Cortés. Desta forma, tenta-se perceber se a função autor idealizada por aquele teórico é um fenômeno puramente contemporâneo que se manifesta e cristaliza-se dentro da sociedade ocidental capitalista, ou se é um fenômeno que se forma dentro do desenvolvimento literário propriamente dito, transformando-se em consonância ao movimento histórico que culmina em nosso tempo.

1. Foucault e a função autor

Em uma palestra proferida em 1969 à Société Française de Philosophe, Foucault (1997) surpreende os espectadores e, ao invés de mostrar-lhes um trabalho pronto, apresenta-lhes algumas hipóteses em que estava trabalhando a respeito de autores. Nesta palestra, ele demonstra sua particular visão acerca do que é a função de um autor e como este se forma na sociedade contemporânea, demonstrando assim suas características e formas de assimilação dentro do meio ocidental em que estamos inseridos até hoje. Com base no texto desta conferência, é possível captar diversas informações interessantes e instigantes sobre tal tema.

A função autor é definida como tipicamente capitalista, nascida da individualização da história e da escrita. Autor, unidade primeira e fundamental da literatura – ao lado da obra propriamente dita –, não pode desta forma ser interpretado como algo exterior ao texto, menos ainda uma entidade descartável, como poderiam considerar correntes literárias que interpretam a obra por ela mesma, tal qual o formalismo russo, por exemplo. O autor é parte integrante na obra, é um ser entre o escritor real e o narrador, que faz escolhas imersas em ideologias sociais e contextos históricos, bem como dá (ou não) credibilidade e identidade ao texto escrito. É tamanha sua importância hoje que não se faz comum a leitura de textos anônimos e, mais além, há relatos de diversos textos de circulação em massa (prioritariamente através de correios eletrônicos e outras formas de comunicação eletrônica escrita) que, para ganhar credibilidade, são freqüentemente enviados com a falsa assinatura de renomados escritores. Hoje estamos sempre perguntando a qualquer texto

(...) de onde é que veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que projeto. O sentido que lhe conferirmos, o estatuto ou o valor que lhe reconhecermos dependem da forma como respondermos a estas questões. E se, na seqüência de um acidente ou da vontade explícita do autor, um texto nos chega anônimo, imediatamente se inicia o jogo de encontrar o autor. O anonimato literário não nos é suportável; apenas o aceitamos a título de enigma. (Foucault, p.49-50)

O autor é mais que um nome próprio, é palavra que carrega também uma descrição e uma designação – de escola literária, de tipo de texto, de local e tempo histórico e geográfico, entre outros. É um nome que pode creditar valores, positivos ou negativos, ao texto a que está ligado; atribui um papel ao discurso, classifica-o; e faz com que textos se relacionem. Contudo não é um nome próprio necessário em todos os textos. Enquanto o anonimato não é bem-vindo na maioria das narrativas, há alguns textos em que tal função é dispensável, mesmo dentro da nossa realidade. “A função autor é, assim, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior da sociedade” (Ibidem, p.46).

Esta função autor apresenta, basicamente, quatro características:

1. É um objeto de apropriação: nasce antes da concretização da sociedade capitalista, pela necessidade de punição, ou seja, pela necessidade de se conhecer a procedência de textos que pudessem ser considerados contraventores, seja por determinado governo, seja pela autoridade de alguma religião – fato muito comum no período de Inquisição, por exemplo. Contudo, firma-se como necessidade quando, junto ao advento da cristalização da sociedade capitalista, no final do século XVIII e início do XIX, os autores estabelecem uma relação de propriedade melhor definida, com a qual poderiam obter benefícios para si mesmo através de acordos trabalhistas, o que não necessariamente lhes livrou da punição já instituída – vide obras censuradas em diversas formas de ditadura, por exemplo.

2. Não é uma noção absoluta e imutável: a recepção do autor varia no tempo e no espaço; o nome pode ser considerado importante ou não segundo a forma de recepção e análise que cada tempo e local garantem e/ou procuram na obra.

3. Estabelece um estatuto valorativo: a função autor confere valor ao texto. Por sua vez, tal fato não é espontâneo, é, em verdade, a construção social e histórica de um sujeito. A obra defini-se, então, como resultado da operacionalização racional de um indivíduo e é parte de um projeto efetuado por alguém imerso em escolhas individuais e coletivas, ou seja, contextualmente influenciadas.

4) A função autor não define apenas este, ela faz com que este mesmo autor seja uma cisão do locutor interno ao escritor real, conformando diversos “eus” presentes no texto.

Em resumo, pode-se dizer que

(...) a função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que encerra, determina, articula o universo dos discursos; não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; não se define pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas através de uma série de operações específicas e complexas; não reconduz pura e simplesmente a um indivíduo real, podendo dar lugar a vários “eus” em simultâneo, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem ocupar. (p.56-57)

Apoiado em tais definições, o presente trabalho segue em sua segunda parte tentando não mais provar a compatibilidade contemporânea de tais afirmações, mas perceber se tais apontamentos já faziam parte de narrativas escritas anteriormente ao nosso período atual, buscando exemplo que possa questionar tal característica autoral como parte fundada na sociedade capitalista agora consolidada.

2. Uma leitura sobre as cartas de Cortés

Hernán Cortés foi um colonizador espanhol nas Américas durante a época da conquista e colonização desta região. Espanhol nascido provavelmente em 1485 em Medellín, atual província de Badajoz, foi mandado pela coroa espanhola ao Caribe para exercer trabalhos administrativos, de onde foi convocado a participar, junto ao conquistador Diego Velázquez, da conquista da ilha de Cuba em 1511, oportunidade em que obteve sua primeira experiência militar. Depois de um grande esforço político, conseguiu a patente de capitão junto a Velázquez e, em outubro de 1518, tornou-se dirigente em uma expedição à Yucatán, região em que hoje está o México. A princípio, sua função era travar acordos comerciais com os indígenas da região, porém Cortés rompeu com Velásquez e fundou uma vila independente, a qual respondia diretamente à coroa. É neste contexto que ele principia suas cartas ao rei da Espanha, Carlos V, as quais serão aqui analisadas[1]. As cartas tinham como propósito a legalização de sua intenta, contrapondo-se às cartas que Velásquez também dirigia ao rei contando sobre a rebeldia daquele capitão. Foram feitas cinco cartas (também chamadas de relações) entre 1519 e 1526, período em que Cortés conseguiu ser nomeado o governador da Nova Espanha (ou seja, das novas terras conquistadas pela coroa).

O texto aqui analisado foi feito em 1520, segundo data assinalada pelo próprio punho do autor, e discorre sobre três temas bem definidos. Segundo Gómez (2006, p.48)

La primera narra las incidencias de la larga marcha por el interior de México que culmina con la entrada en Tenochtitlán. En la segunda se describen con detalle la gran ciudad, sus gentes y costumbres, incluyendo todo lo relativo al servicio de Motecuhzoma. La tercera comienza con la llegada de Narváez a Veracruz, y narra su enfrentamiento con Cortés, la vuelta de éste a Tenochtitlán, la rebelión de los mexicas que consiguen expulsar a los españoles de la ciudad (la Noche Triste) y la retirada de éstos a Tlaxcala, donde consiguen reponerse y fundar una ciudad, Segura de La Frontera.[2]

As cartas de Cortés apresentam uma dupla e clara intenção. De um lado, ele pretende demonstrar pormenorizadamente as características geográficas, econômicas e sociais de uma terra ainda desconhecida, claramente para tornar claro ao seu receptor quão rentável é a dominação daquele local. Por outro lado, tenta creditar valor a si mesmo, demonstrando sua coragem e fidelidade ao rei de Espanha, a qual é conquistada tempos mais tarde com sua nomeação para governador do México. Nota-se, ainda, uma engenhosa estrutura na Segunda Relação. Sua composição, conforme dito acima, tem na primeira parte grandes momentos de coragem e audácia que o próprio protagoniza, buscando comprovar que é digno da confiança real; segue então a descrição minuciosa a respeito dos hábitos e do ambiente local, a fim de incitar o euforismo de seu leitor. Já munido de todo esse arcabouço, ele finaliza com um fato isolado de derrota pessoal, contudo mostrado de forma a preservar seu valor e finalizado com impressionante otimismo, reforçando o potencial da terra e solicitando maiores investidas para a conquista sólida de tal espaço.

É interessante também notar que o protagonista – que é o próprio Cortés – é mostrado de forma diferente no decorrer da narrativa. Em momentos de ação, em que está em jogo a sua credibilidade como militar e político, o personagem principal é mostrado como um homem ativo, de coragem e sábias decisões. Os verbos são majoritariamente em primeira pessoa, sempre com o singular para ações de cunho político e plural em momentos de combate (principalmente na primeira e na terceira parte do texto), como se mostra nos trechos abaixo:

Yo le torné aquí a decir y replicar el gran poder de Vuestra Majestad, y [que] otros muy muchos y muy poder mayores señores que no Muteeçuma eran vasallos de Vuestra Alteza y aun que no lo tenían en pequeña merced, y que ansí lo había de ser Muteeçuma y todos los naturales destas tierras (p.163)

Y llegaran dos mensajeros llorando, diciendo que los habián atado para los matar y que ellos se habían escapado aquella noche. Y no dos tiros de piedra dellos asomó mucha cantidad de indios muy armardos y con muy grand grita (...) Y yo les comencé a facer mis requirimientos en forma con laslas lenguas que conmigo llevaba (...) y cuanto más me paraba a los amonestar y requerir con la paz tanto más priesa nos aprovechaban requerimientos ni protestaciones, comezamos a nos defender como podíamos, y ansí nos llevaron peleando hasta nos meter entre más de cient mill hombres de pelea que por todas partes no tenían cercados. (p.176)

(...) puse en ella imágenes de Nuestra Señora y de otros santos que no poco el dicho Muteeçuma y los naturales sintieron. Los cuales primero me dijeron que no lo hiciesse porque si se sabía por las comunidade3s se levantraían contra mí (...) Yo les hice entender con las lenguas cúan engañados estaban en tener su esperanza en aquellos ídolos que eran hechos por sus manos de cosas no limpias, y que habían de saber que había un solo Dios universal señor de todos, el cual había criado el cielo y la tierra y todas las cosas y que hizo a ellos y a nosotros (...) Y les dije todo lo demás que yo en este caso supe para los desviar de sus idolatrias y atraer al conoscimiento de Dios Nuestro Señor. (p.238-239)

Em outros momentos, ele demonstra um desenvolvimento mais direto, sucinto, quase técnico. Por vezes, sua narrativa mostra-se como uma espécie de relatório aos monarcas espanhóis, sendo divido em partes bem definidas por temas, tais como localização e características geográficas, organização política e comercial da cidade, hábitos do líder Montezuma e dos moradores locais, entre outros. Quando fala da cidade, o texto apresenta-se impessoal, com verbos conjugados majoritariamente na terceira pessoa, como nos trechos abaixo:

Esta grand cibdad de Temixtitán está fundada en esta laguna salada, y desde la tierra firme hasta el curepo de la dicha cibdad por cualquier parte que quisieren entrar a ella hay dos leguas. Tiene cuatro entradas todas de calzada hecha a mano tan ancha como dos lanzas jinetas. (p.233)

(...)

Hay en esta grand cibdad muchas casas muy buenas y muy grandes. Y la causa de haber tantas casas prencipales es que todos los señores de la tierra vassalls del dicho Muteeçuma tienen sus casas en la dicha cibdad y residen em ella cierto tiempo del ano, u demás desto hay en ella muchos cibdadanos ricos que tienen ansimismo muy buenas casas. (p.241)

O que se pode notar, então, é que a narrativa empreendida por Cortés denuncia um homem de ação, alguém que exercia um papel de ativo e de liderança na expedição – que se pode comprovar não só pelo aspecto técnico que sua narrativa às vezes apresenta, mas também pela presença física do autor nas histórias que ele mesmo conta.

3. APROXIMAÇÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE OS TEXTOS

Ao contrapor a teoria ao texto narrativo, é possível verificar vários pontos de aproximação entre ambos. Se para Foucault, o autor é parte integrante e indissociável da análise literária, prova-se que com Cortés não se pode agir de forma diferente. Ao contrário, personagem de um momento histórico importantíssimo para a atualidade, a contextualização deste autor é fundamental para entender as intenções e formas de sua escrita. De um lado, vemos um escritor típico das crônicas do descobrimento, que relata e descreve a terra ainda inexplorada com a preocupação de ser fiel e/ou incentivar a euforia da realeza espanhola. É um escritor de seu tempo, imerso na escolha não só do relato, mas também da auto-promoção e auto-afirmação como grande político, explorador e militar. Põe-se já aqui uma característica forte em seu texto em relação à teoria. Ora, o texto é de meados dos século XVI, um período de transição entre sistemas econômicos, identificado por diversos termos como pré-capitalismo, período de acumulação capitalista, mercantilismo, entre outros. Fato é que todos corroboram para a idéia de uma passagem histórica, embrião do que temos hoje consolidado. Se Foucault diz que só com a sociedade capitalista já concreta é que os autores assumem um lugar de beneficiário com a escrita – não mais meros homens passíveis de punição –, Cortés já demonstra que os benefícios já eram solicitados em seu tempo. A primeiro momento não voga o pecuniário, mas um valor quase subjetivo de afirmação e reconhecimento, o que, mais tarde, é recompensado com nomeações e cargos mais importantes dentro da organização do império espanhol.

Quanto ao valor, Cortés também lhes impõe recepções diversas, tanto em seu tempo quanto nos dias de hoje. Antigamente, conquistou sua posição e deu crédito as suas próximas cartas. Hoje, ainda varia entre o engenhoso escritor na visão de Gomés (1997) e o cruel conquistador e usurpador espanhol na visão de Galeano (1981). Não é inequívoco, tampouco universal, mas confirma-se como presente e indissociável.

Uma outra característica é extremamente interessante nesta análise. Há uma nítida confluência entre o escritor real (indivíduo), o locutor interno (narrador) e o autor. A construção da obra de Cortés é tão engenhosamente posta que cria e conflui estas três instâncias de uma mesma pessoa. O escritor real, capitão e conquistador espanhol, é retratado e transformado em personagem quase fictício e mitológico na narrativa, dono de um caráter elevado, de ações concretas, corretas e quase impecáveis. Além disso, é o escritor real quem colhe os louros concretos em sua época. É ele quem é promovido e reconhecido pelas bravuras daquele personagem. Já o narrador, personificação maior dessa personagem, molda-se a despeito desta intencionalidade interna contida na obra, agindo e falando de acordo com o momento narrativo. Ao fim, o autor é quem fecha este ciclo, criando o valor da obra, assumindo seus benefícios e riscos a que se poderia estar exposto legalmente.

Sendo assim, o que se pode perceber ao fim desta brevíssima reflexão, é que o conceito de Foucault é inequivocamente aplicável ao nosso tempo, porém não é uma construção de nossa sociedade. Parece, através do que fora aqui exposto, que é o resultado de um desenvolvimento histórico maior, que abrange outros períodos e momentos da própria prática escrita e narrativa ocidental. Obviamente não se faz aqui um decreto fundamental, posição consolidada nem mesmo por quem aqui escreve. Uma opinião mais contundente contaria com análises mais profundas e comparativas, buscando acompanhar este processo em outros cronistas como Bernal Díaz ou Inca Garsilaso, por exemplo. Mas, assim como o próprio Foucault diz, o que se pretende é incentivar a crítica e a reflexão, e não sufocar o pensamento entre muros intransponíveis, ainda que pouco sólidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CORTÉS, Hernan. Segunda Relación. In.: Cartas de Relación. Madri: Clásicos Castalia, 1993. (p.159-309)

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? S.L.: Passagens, 1997, p.29-71

GALEANO, Eduardo H. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. 309p.

GOMÉZ, Ángel Delgado. Introducción. In. CORTÉS. H. Cartas de Relación. Madri: Clásicos Castalia, 1993. (p.9-72)



[1] Em verdade, para a análise que se pretende neste pequeno trabalho, os esforços acadêmicos estarão concentrados mais na segunda relação. Outras relações serão apenas citadas quando uma comparação se fizer necessária.

[2] Essas partes estão contidas, respectivamente, nas seguintes páginas: de 159 a 206; de 206 a 248; e de 248 a 309.

CONTRARIEDADES: Brevísssima análise sobre um poema de Cesário Verde

(Uma interessante tensão entre duas instâncias que brigam dentro de um mesmo homem. Foi doloroso pela dúvida da certeza de ainda ser capaz e pela insegurança de ainda não se sentir apto, mas os resultados foram bons e ajudam a serenar a alma - Dezembro de 2007)


CONTRARIEDADES

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
----- Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
----- E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
----- E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
----- Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, toma-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
----- Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
----- Me tem fechado a porta.

A critica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
----- Vale um desdém solene.

Com raras exceções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
----- Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
----- Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores. Arte?
Não lhes convém, visto que os seus leitores
----- Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
----- Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos
----- Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
----- E fina-se ao desprezo!

Mantêm-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente
Oiço-a cantarolar uma canção plangente

----- Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
----- Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
----- Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. E feia...
----- Que mundo! Coitadinha!

A observação atenta ao poema de Cesário Verde acima citado pode levar a frutíferas análises sobre a forma como o poeta tenta capitalizar simbolicamente sua obra e a si próprio. Antes, porém, será necessário um também breve passeio pela teoria sociológica para que se torne claro os pontos e posicionamentos a serem assumidos no presente trabalho.

Em Bourdieu tem-se que a sociedade usa do conceito de capital simbólico para definir um valor dado às coisas (incluindo o homem) que, em muitas vezes, transcende o valor de troca nelas embutidos. Os grupos não são, neste autor, representados apenas pela classe, mas sim (e especialmente) pelos campos. Neste sentido, a forma como o sujeito se apropria da natureza, como ele se “comporta” frente à organização do sistema de produção, não é o principal modo para identificar a qual classe (proletariado ou burguesia) pertence, a instância definidora é maior que a determinação histórica e/ou econômica, sendo pois determinada pela carga simbólica que a este sujeito é atribuída – o que não deixa de ser uma moeda de troca dentro da sociedade, ainda que não palpável.

Com relação aos literatos, temos então que considerá-los dentro deste esquema de valorização simbólica que a todos abrange, o que nos leva necessariamente à constatação de um campo específico de artistas e intelectuais, formado por tais tipos de produtores e que, necessariamente, está ligado ao grupo maior que detém o poder. O campo autônomo de intelectuais e artista passa a ser uma fração da burguesia que não necessariamente a representa, mas que intrinsecamente está ligado a ela. Um campo intelectual e artístico é a forma de atribuir valor a este grupo de pessoas que têm comportamentos produtivos e capacidades específicas dentro de um esquema maior, que é o próprio modo de produção. E, por mais autônomo que este queira transparecer – influindo os valores simbólicos, indicando quem são os que têm maior e menor valor dentro do campo ­–, ainda assim está estritamente ligado ao todo do grupo dominante, bem como à eterna relação e/ou tensão com as outras frações da burguesia.

(...) a condição básica consiste em construir o campo intelectual (por maior que seja sua autonomia, ele é determinado em sua estrutura e em sua função pela posição que ocupa no interior do campo do poder) como sistema de posições predeterminadas abrangendo, assim, como os postos de um mercado de trabalho, classes de agentes providos de propriedades (socialmente construídas) de um tipo determinado. (...) Quando se trata de explicar as propriedades específicas de um grupo de obras a informação mais importante reside na forma particular da relação que se estabelece objetivamente entre a fração dos intelectuais e artistas em seu conjunto e as diferentes frações das classes dominantes. (Ibidem, p.190-191)

Ao considerar o século de nosso poeta (XIX), vê-se que o campo intelectual e artístico conquista uma autonomia bastante relevante na sociedade, não há mais quem lhes estabeleça regras de forma direta. Contudo, internamente, há uma normalização de seus hábitos (formas de divulgação, pesquisa, produção, etc.). A briga pelo poder neste (e em qualquer outro campo autônomo) passa a ser interna.

Ao notarmos, ainda em uma perspectiva histórico-sociológica, a biografia de Cesário Verde (Reis, p.398), é perceptível alguns aspectos interessantes para iniciarmos a análise. O poeta é oriundo da fração comerciante da burguesia – ambiente pouco propício à criação poética –, não concluiu nenhum curso em nível superior e pouco conseguiu publicar durante a sua breve vida – não por falta de produção e sim de aceitação. O reconhecimento a Cesário Verde é póstumo, o que muitas vezes é indicado como fator intensificador de sua parca biografia conhecida.

Contrariedades é construído no momento em que “tendo adquirido a atitude de observação que permitira uma certa representação do espaço urbano, Cesário desenvolve e particulariza essa atitude” (Ibidem, p.402), mas acredita-se aqui que tal representação está mais ligada a uma auto-imagem, à construção de um eu-lírico descontente não só com a urbanização, mas sobretudo com a desconsideração por aqueles estão excluídos do sistema. Em outras palavras, o poeta demonstra o quanto ele próprio é simbolicamente valioso, à revelia da desconsideração que o seu próprio campo social lhe imputa, e utiliza-se das imagens dos populares como forma de ilustração de sua própria condição social frente à produção literária. Tentemos esmiuçar tal hipótese.

Na primeira estrofe do poema temos, de imediato, acesso ao sentimento predominante do eu-lírico durante todo o texto (cruel, frenético, exigente), denotando um posicionamento arredio frente a sua principal queixa (nem posso tolerar os livros mais bizarros). Os dois últimos versos são a concretização imagética deste estado de espírito. Essa lógica permanece na segunda estrofe e desemboca em uma curiosa descrição na terceira estrofe. O eu-lírico está em um escritório que fica a frente da casa de uma mulher pobre, endividada, doente e que muito trabalha para pouco viver. Sob este ponto, assume-se que, apesar da aura realista que perpassa grande parte da obra de Cesário Verde, este apelo ao nível social que no texto se demonstra é correlativo a uma identificação da própria voz do poema, um reflexo de sua imagem de excluído do campo de intelectuais e artistas refletida (ou simbolizada) na imagem daquela mulher excluída socialmente do grupo dominante da sociedade. Esta idéia se reforça na próxima estrofe em que é mostrada a rejeição que o jornal empreende contra a publicação dos versos do poeta. É neste momento em que fica mais clara a tentativa de valoração simbólica que Cesário faz neste poema. Nas estrofes posteriores falará da falta de sensibilidade (e competência) das redações que tanto o rejeitam, e do fim trágico que dá a suas produções, uma vez que de nada servem se não são publicadas – o que, por si só já indica a busca pelo mercado, ainda que não seja perceptível qual o mercado que o autor quer alcançar.

Mais claro se torna a tentativa de valoração simbólica nas estrofes de nona à décima segunda. Em primeiro lugar ele identifica seu público-alvo, os amigos e artistas, pertencentes e bastiões das regras de aceitação de campo intelectual e artístico, pessoas que o entendem em contrapartida (ou contradição) às pouco competentes redações. Esta pouca competência é constantemente reafirmada, dizendo o autor que a arte não importa ao editor, a ele é importante que seus leitores, não tão doutos ou hábeis quanto os artistas, não compreenderão aquela arte. Cesário se reveste agora de um arcabouço simbólico extremamente grande, embutindo a si mesmo o dom de fazer boas poesias em recusa a facilidade e pouco engenhosidade que as narrativas, segundo ele, têm ­– agora sim a demonstração de que não é qualquer mercado a que ele quer se inserir, mas sim o erudito. Conclui, então, que seus versos, de sentimentos finos e boa técnica, valem mais pela consciência da competência que o próprio autor tem sobre si – o que o acalma, mesmo sem resolver o problema daquela mulher pobre e moribunda, talvez por se ter certeza que ainda o seu próprio problema não tenha sido resolvido.

Tem-se, com essa brevíssima análise, um estopim de crítica que pretende perceber a lógica desta poesia não apenas pelo viés formal, mas também por sua relação com a sociedade em que foi produzida. O sujeito, no caso o poeta, busca incessantemente sua valorização simbólica frente aos seus iguais e, em última instância, frente ao todo formador da camada dominante do sistema de produção. Fato que, no presente caso, só obteve resultados “concretos” postumamente.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BOURDIEU, Pierre. Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva. (p.183-202)

REIS, Carlos. Cesário Verde: realismo e criação poética. In. História da literatura portuguesa. Vol.5. São Paulo: Publicações Alfa. (397-417)

VERDE, Cesário. Contrariedades. In. A biblioteca virtual do estudante de língua portuguesa. Disponível em: . Acessado em 19 dez 2007.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

EL ÁRBOL, CONTO EM PRIMEIRA PESSOA

(Uma leitura feita sobre o conto El árbol, de Maria Teresa Bomball)

O narrador é a voz que fala dentro da obra literária, uma espécie de contador da história que, dependendo dos fatores que o circunda, exerce maior ou menor influência no todo do texto. Leite (1997, p.25-70) nos dá uma boa compilação da tipologia de Norman Friedman, indicando-nos as várias facetas que o crítico identificou sob o signo “narrador” dentro da produção literária. É através desse referencial teórico que o conto El árbol, de Maria Luísa Bomball é analisado neste trabalho, o que não significa dizer que se apresenta aqui uma simples identificação entre teoria e prática, ao contrário, o que se pretende é realizar uma observação crítica tanto sobre presença do narrador no conto estudado, bem como sobre a dificuldade em defini-lo simplesmente pela aplicação de determinada teoria.

O primeiro contato com o texto pode deixar uma falsa impressão de que se está frente a um narrador do tipo onisciente intruso, ou seja, um narrador que “tem a liberdade de narrar à vontade, de colocar-se acima (...), adotando um ponto de vista divino (...) para além dos limites do tempo e do espaço.” (Ibidem, p.27). É, por definição, um narrador que tem acesso a todas as informações sobre as personagens, tem acesso aos seus pensamentos e vontades, narrando predominantemente em terceira pessoa. Caracteriza-se, também, por usar suas próprias impressões e palavras durante o texto, tecendo “comentário sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados com a história narrada” (Ibidem, p.27). Esta impressão aparece logo no início do texto, no primeiro parágrafo, momento em que esse narrador descreve o ambiente inicial do conto:

El pianista se sienta, tose por prejuicio y se concentra un instante. Las luces en racimo que alumbran la sala declinan lentamente hasta detenerse en un resplandor mortecino de brasa, al tiempo que una frase musical comienza a subir en el silencio, a desenvolverse, clara, estrecha y juiciosamente caprichosa.

Contudo, o parágrafo seguinte já põe em xeque tal consideração, uma vez que apresenta o narrador dando voz à protagonista do conto. Ele, ao invés de usar suas palavras e comentar o que pensa a personagem, apenas faz com que a voz do pensamento de Brígida seja ouvida pelo leitor, deixando claro que o pensamento não lhe pertence através do uso das aspas:

“Mozart, tal vez” – piensa Brígida. Como de costumbre se há olvidado de pedir el programa. “Mozart, tal vez, o Scarlatti...” ¡Sabía tan poca música!

Apesar do comentário sobre o conhecimento musical da personagem, é nítido que este não é parte de uma crítica pessoal do narrador, e sim a confirmação do pensamento da protagonista. Em outras palavras, ao invés de julgá-la, o narrador atesta o que a personagem acredita sobre si mesma, confirma que é a própria protagonista que acredita não conhecer muito sobre música. Além disso, no decorrer do conto ele demonstra não ter uma presença divina sobre os fatos, ao contrário, apesar de se posicionar em alguns pontos e refletir sobre a situação, o narrador, assim como o leitor, parece descobrir ao poucos o desfecho da obra, perdendo, de certa forma, seu poder sobre o desenvolvimento do conto.

Seria possível, então, identificá-lo como um narrador onisciente neutro, que tem uma definição bastante próxima ao anterior, diferenciando-se daquele basicamente pela “ausência de intrusões e comentários gerais ou mesmo sobre o comportamento das personagens, embora a sua presença, itrepondo-se entre o leitor e a história, seja sempre muito clara.” (Ibidem, p.32). Trechos que possam servir como argumento favorável a esta perspectiva abundam no conto. Até mesmo os trechos citados acima poderiam ser reutilizados como exemplos comprobatórios dessa hipótese. Contudo, o poder divino que ainda é parte da definição de ambos os tipos de narradores citados, não se comprova em outras partes. Ora, este poder divino, este olhar de cima, é o responsável pela onipresença desses arquétipos, e como concordar com essa onipresença frente a trechos como este:

Fue entonces cuando alguien o algo golpeó en los cristales de la ventana.

Había corrido, no supo cómo ni con qué insólita valentía, hacia la ventana. La había abierto. Era el árbol, el gomero que un gran soplo de viento agitaba, el que golpeaba con sus ramas los vidrios, el que la requería desde afuera como para que lo viera retorcerse hecho una impetuosa llamarada negra bajo el cielo encendido de aquella noche de verano.

Ora, ao que parece, o narrador só tem acesso às informações através do olhar da protagonista. Antes, pairava a dúvida sobre quem golpeava os vidros da janela, tanto por parte do narrador como da personagem e do leitor. Esta dúvida só é sanada depois que a personagem, através de sua coragem, abre a janela e encontra o gomero. Aliás, com exceção dos acontecimentos que ocorrem no presente (ambientados na sala de concerto), o desenrolar da trama só é sabido pelo narrador filtrado pelo olhar da protagonista, por suas lembranças do passado, por suas ações e reflexões.

Como a narração é feita em terceira pessoa (o que afasta a possibilidade de um narrador-protagonista, ou seja, de ser a personagem principal quem narra a história) e o conto é todo filtrado pelo olhar da protagonista, chega-se à hipótese de se tratar de um narrador do tipo onisciência seletiva, o qual se define como a perda do alguém que fala. “Não há propriamente narrador. A história vem diretamente, através da mente das personagens, das impressões que fatos e pessoas deixam nelas (...) Difere da onisciência neutra porque agora o autor traduz os pensamentos, percepções e sentimentos, filtrados pela mente das personagens” (Ibidem, p. 47). Na verdade, esta também é a definição do narrador do tipo onisciência seletiva múltipla, que só se diferencia daquele porque o primeiro utiliza-se apenas uma personagem, enquanto que no último há a presença de vários personagens utilizados da mesma forma.

Ainda assim não há como utilizar a tipologia de Friedman como mera aplicação de uma ferramenta. Ora, a linha fronteiriça entre um e outro tipo de narrador é bastante tênue, e suas definições não dão conta de responder a todas as indagações feitas acerca do conto de Bombal. Ora, como explicar os pequenos comentários do narrador, por exemplo? Ou suas digressões a respeito da própria protagonista, de quem utiliza a percepção para narrar a história? É daqui que nasce mais uma hipótese que tende a confirmar a maestria literária operada pela autora neste conto.

Levine (1984, p.327-328) mostra que o espelho é uma metáfora recorrente na produção literária feminina. Este espelho revela a mulher na busca da sua identidade, a qual é sempre balizada pelo olhar do outro. É a mulher buscando o seu próprio outro, a sua imagem, buscando entender como o outro a vê, um outro quase sempre marcado como superior ou mais evoluído. A autora ainda amplia esta noção fazendo um paralelo entre a utilização do espelho por personagens femininos e masculinos. Em suas palavras:

(...) para la mujer en un sistema tradicional, “el silencio es total... son prisioneras de los espejos” como afirma Monique Wittig. Para el hombre (hombre y humanidad siendo sinónimas en el uso coloquial) la inmersión en el espejo lleva a la auto-concientización, la soledad, la muerte narcisista, pero también implica la búsqueda del Otro, el intento por encontrar el próprio Yo (Ibidem, p.330-331).

O narrador em El árbol parece compartilhar muito intimamente das lembranças de Brígida, numa aproximação tamanha que, muitas vezes, confunde o leitor a respeito do dono daquela voz. Ao que parece, muitas vezes, o narrador nada mais é que o próprio Outro de Brígida, observando e refletindo sobre suas lembranças juvenis.

Primeiramente, é necessário demonstrar que é bem possível que o narrador seja uma voz feminina. No trecho a seguir, pode-se perceber que esta voz se coloca fora do grupo dos homens:

Tal vez la vida consistía para los hombres en una serie de costumbres consentidas y continuas. Si alguna llegaba a quebrarse, probablemente se producía el desbarajuste, el fracaso. Y los hombres empezaban entonces a errar por las calles de la ciudad, a sentarse en los bancos de las plazas, cada día peor vestidos y con la barba más crecida.

Olhando o trecho mais de perto, percebe-se que na primeira vez em que usa “los hombres” em terceira pessoa, esta voz narrativa se distancia deste grupo, mas ainda não se nega como parte dele. No entanto, na segunda ocorrência, a sua não identificação com esse grupo é quase que inegável. Ela aponta os resultados de um fracasso social como sendo algo exterior à ela. Se ela fracassar socialmente, não obterá o mesmo resultado que o deste grupo. Nitidamente, pelo uso da terceira pessoa, ela se posiciona fora do grupo. Esse indício, por mais que não prove a identidade da voz narrativa com a da protagonista, ao menos as aproxima.

A aproximação entre ambas identidades se faz mais forte ao se analisar dois pontos distintos. Num primeiro momento, pode-se observar que, mormente, as dúvidas e reflexões tanto da protagonista quanto da narradora[1] são muito próximas, quase as mesmas. Em vários trechos isso é perceptível.

¡Que agradable es ser ignorante! ¡No saber exactamente quién fue Mozart; desconocer sus orígenes, sus influencias, las particularidades de su técnica! Dejarse solamente llebar por él de la mano, como ahora.

(...)

Pero a ella nunca le importó ser tonta ni “planchar” em los bailes.

(...)

El la alzaba y ella le rodeaba el cuello com los brazos, entre risas que eran como pequeños gorjeos y besos que le disparaba arturdidamente sobre los ojos, la frente y el pelo ya entonces canosa (¿es que nunca había sido joven?) como uma lluvia desordenada.

(...)

– Luis, nunca me has contado de qué color era exactamente tu pelo cuando eras chico, y nunca me has contado tambpoco lo que dijo tu madre cuando te empezaron a salir canas a los quince años. ¿Qué dijo? ¿Se rió ¿Lloró? ¿Y tú estabas orgulloso o tenías vergüenza? Y em el colegio, tus compañeros, ¿qué decían? Cuéntame, Luis, cuéntame...

Nestes quatro trechos temos uma aproximação, no mínimo instigante, entre narradora e protagonista. No primeiro parágrafo a narradora atesta que é muito agradável ser ignorante, reafirmando a idéia no parágrafo seguinte, já sob o aval da protagonista, dizendo que a ela nunca lhe importou tal condição. Tem-se, então, a confluência da opinião de ambas. Já nos dois próximos exemplos, percebe-se o compartilhamento de dúvidas. Ambas têm a mesma dúvida. De um lado, a narradora se questiona se Luis fora jovem algum dia, enquanto que Brígida, em outro momento, questiona Luis sobre o nascimento de seus cabelos brancos. Ambas desconhecem a origem dos cabelos e se sentem curiosas sobre o assunto.

Além disso, por vezes as vozes se confundem fisicamente no texto. Nem sempre fica claro quem é que está pensando, falando e, até mesmo, sentido a situação. Sobretudo ao se perceber as pontuações utilizadas pela autora.Voltando ao primeiro exemplo dado neste pequeno ensaio, percebe-se que, ao dar voz ao pensamento da protagonista, a voz narrativa utiliza-se de aspas para indicar a quem pertence o pensamento. Em outros momentos, a fala da protagonista é identificada pelo uso de travessão, mesmo fora de diálogos. Contudo, a situação fica comprometida frente a trechos como os seguintes:

– Porque tienes ojos de venadito asustado – contestaba él y la besaba. Y ella, súbitamente alegre, recibía orgullosa sobre su hombro el peso de su cabeza cana. ¡Oh, esse pelo plateado y brillante de Luis!

(...)

¡Mentira! Eran mentiras su resignación y su serenidad; quería amor, sí, amor, y viajes y locuras, y amor, amor...

No primeiro trecho, Luis responde à Brígida porque havia casado com ela. A narrativa segue normalmente, com a narradora costurando sua retórica até que aparece um comentário bastante pessoal a respeito dos cabelos de Luis. Sem inferir aspas ou travessão, a narradora demonstra sua admiração pelos cabelos de Luís manifestando uma surpreendente intimidade. Já o segundo trecho refere-se ao desfecho da história, momento em que Brígida se enche de coragem, compreende o mundo a sua volta e sua condição de oprimida na sociedade machista e patriarcal. Contudo, quem exalta a emoção e se revolta verbalmente contra Luís é a narradora, isso porque, novamente, não há uso de nenhum artifício lingüístico identificando o parágrafo como sido proferido pela protagonista.

Unindo estes levantamentos à metáfora do espelho identificada anteriormente, pode-se imaginar que este narrador é parte integrante da própria protagonista. Não é apenas um alguém que fala através dos filtros da personagem principal, mas sim a busca dessa mulher pela sua identidade, pelo seu Outro (e através de seu Outro) ou pelo seu verdadeiro Eu. Como, por vezes, a sociedade a identificou como tola, ignorante, incapaz, ela necessita da visão do outro para perceber suas próprias conquistas, ou, melhor dizendo, precisa da aprovação de um outro para validar suas próprias conclusões – por mais que este outro seja uma elevação de seu próprio ser, já liberto durante as digressões reflexivas de Brígida no momento em que se passa o conto.

Em suma, a voz narrativa no conto El árbol, é empregada de forma engenhosa e peculiar por Maria Luísa Bombal. Seguir a tipologia de Friedman para identificar essa voz leva a identificação de pontos em comum em diversos tipos de narrador, assim como dá embasamento para a negação destes mesmos arquétipos. Ainda que se utilize a onisciência seletiva por identificá-la a mais próxima ao conto, o texto se mostra tão próximo às sensações e reflexões da protagonista, que passa a ser a própria voz da protagonista, a qual está se auto-observando do lado de fora, como um outro indivíduo que, a partir do ocorrido na trama, tem esperteza suficiente para entender os fatos.

BIBLIOGRAFIA

BOMBALL, Maria Luisa. “El árbol”. In: Obras completas. Santiago: Andres Bello, 1996. (p.205-218)

LEITE, Ligia Chiappini M. “A tipologia de Norman Friedman” In: O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1997 (p.25-70)

LEVINE, SuzanneJill. El espejo de agua: hacia uma lectura de la ultima niebla de Maia Luisa Bomball. In: Revista Eco, Bogotá, n.º267, Janeiro de 1984. (p.326-336)



[1]Depois de acreditar que a voz narrativa é feminina, é impossível continuar o texto utilizando a palavra narrador em gênero masculino.