INTRODUÇÃO
Foucault (1997) apresenta uma instigante reflexão a respeito do autor contemporâneo, fazendo observações acerca de sua origem, características e funções, entre outros pontos de seu texto. Tal reflexão se torna instigante porque o próprio autor revela que sua intenção não é montar um arcabouço teórico estanque, mas sim, por à prova suas indagações e incitar a crítica ocidental a pensar sobre o assunto. Assim sendo, o presente trabalho traz uma breve análise sobre os termos levantados por este autor e, a fim de realizar uma reflexão a respeito da aplicabilidade de seus conceitos, compara tal teoria a um texto anterior à época atual, qual seja a Segunda Relación escrita pelo capitão espanhol Hernán Cortés. Desta forma, tenta-se perceber se a função autor idealizada por aquele teórico é um fenômeno puramente contemporâneo que se manifesta e cristaliza-se dentro da sociedade ocidental capitalista, ou se é um fenômeno que se forma dentro do desenvolvimento literário propriamente dito, transformando-se em consonância ao movimento histórico que culmina em nosso tempo.
1. Foucault e a função autor
Em uma palestra proferida em 1969 à Société Française de Philosophe, Foucault (1997) surpreende os espectadores e, ao invés de mostrar-lhes um trabalho pronto, apresenta-lhes algumas hipóteses em que estava trabalhando a respeito de autores. Nesta palestra, ele demonstra sua particular visão acerca do que é a função de um autor e como este se forma na sociedade contemporânea, demonstrando assim suas características e formas de assimilação dentro do meio ocidental em que estamos inseridos até hoje. Com base no texto desta conferência, é possível captar diversas informações interessantes e instigantes sobre tal tema.
A função autor é definida como tipicamente capitalista, nascida da individualização da história e da escrita. Autor, unidade primeira e fundamental da literatura – ao lado da obra propriamente dita –, não pode desta forma ser interpretado como algo exterior ao texto, menos ainda uma entidade descartável, como poderiam considerar correntes literárias que interpretam a obra por ela mesma, tal qual o formalismo russo, por exemplo. O autor é parte integrante na obra, é um ser entre o escritor real e o narrador, que faz escolhas imersas em ideologias sociais e contextos históricos, bem como dá (ou não) credibilidade e identidade ao texto escrito. É tamanha sua importância hoje que não se faz comum a leitura de textos anônimos e, mais além, há relatos de diversos textos de circulação em massa (prioritariamente através de correios eletrônicos e outras formas de comunicação eletrônica escrita) que, para ganhar credibilidade, são freqüentemente enviados com a falsa assinatura de renomados escritores. Hoje estamos sempre perguntando a qualquer texto
(...) de onde é que veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que projeto. O sentido que lhe conferirmos, o estatuto ou o valor que lhe reconhecermos dependem da forma como respondermos a estas questões. E se, na seqüência de um acidente ou da vontade explícita do autor, um texto nos chega anônimo, imediatamente se inicia o jogo de encontrar o autor. O anonimato literário não nos é suportável; apenas o aceitamos a título de enigma. (Foucault, p.49-50)
O autor é mais que um nome próprio, é palavra que carrega também uma descrição e uma designação – de escola literária, de tipo de texto, de local e tempo histórico e geográfico, entre outros. É um nome que pode creditar valores, positivos ou negativos, ao texto a que está ligado; atribui um papel ao discurso, classifica-o; e faz com que textos se relacionem. Contudo não é um nome próprio necessário em todos os textos. Enquanto o anonimato não é bem-vindo na maioria das narrativas, há alguns textos em que tal função é dispensável, mesmo dentro da nossa realidade. “A função autor é, assim, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior da sociedade” (Ibidem, p.46).
Esta função autor apresenta, basicamente, quatro características:
1. É um objeto de apropriação: nasce antes da concretização da sociedade capitalista, pela necessidade de punição, ou seja, pela necessidade de se conhecer a procedência de textos que pudessem ser considerados contraventores, seja por determinado governo, seja pela autoridade de alguma religião – fato muito comum no período de Inquisição, por exemplo. Contudo, firma-se como necessidade quando, junto ao advento da cristalização da sociedade capitalista, no final do século XVIII e início do XIX, os autores estabelecem uma relação de propriedade melhor definida, com a qual poderiam obter benefícios para si mesmo através de acordos trabalhistas, o que não necessariamente lhes livrou da punição já instituída – vide obras censuradas em diversas formas de ditadura, por exemplo.
2. Não é uma noção absoluta e imutável: a recepção do autor varia no tempo e no espaço; o nome pode ser considerado importante ou não segundo a forma de recepção e análise que cada tempo e local garantem e/ou procuram na obra.
3. Estabelece um estatuto valorativo: a função autor confere valor ao texto. Por sua vez, tal fato não é espontâneo, é, em verdade, a construção social e histórica de um sujeito. A obra defini-se, então, como resultado da operacionalização racional de um indivíduo e é parte de um projeto efetuado por alguém imerso em escolhas individuais e coletivas, ou seja, contextualmente influenciadas.
4) A função autor não define apenas este, ela faz com que este mesmo autor seja uma cisão do locutor interno ao escritor real, conformando diversos “eus” presentes no texto.
Em resumo, pode-se dizer que
(...) a função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que encerra, determina, articula o universo dos discursos; não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; não se define pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas através de uma série de operações específicas e complexas; não reconduz pura e simplesmente a um indivíduo real, podendo dar lugar a vários “eus” em simultâneo, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem ocupar. (p.56-57)
Apoiado em tais definições, o presente trabalho segue em sua segunda parte tentando não mais provar a compatibilidade contemporânea de tais afirmações, mas perceber se tais apontamentos já faziam parte de narrativas escritas anteriormente ao nosso período atual, buscando exemplo que possa questionar tal característica autoral como parte fundada na sociedade capitalista agora consolidada.
2. Uma leitura sobre as cartas de Cortés
Hernán Cortés foi um colonizador espanhol nas Américas durante a época da conquista e colonização desta região. Espanhol nascido provavelmente em 1485 em Medellín, atual província de Badajoz, foi mandado pela coroa espanhola ao Caribe para exercer trabalhos administrativos, de onde foi convocado a participar, junto ao conquistador Diego Velázquez, da conquista da ilha de Cuba em 1511, oportunidade em que obteve sua primeira experiência militar. Depois de um grande esforço político, conseguiu a patente de capitão junto a Velázquez e, em outubro de 1518, tornou-se dirigente em uma expedição à Yucatán, região em que hoje está o México. A princípio, sua função era travar acordos comerciais com os indígenas da região, porém Cortés rompeu com Velásquez e fundou uma vila independente, a qual respondia diretamente à coroa. É neste contexto que ele principia suas cartas ao rei da Espanha, Carlos V, as quais serão aqui analisadas[1]. As cartas tinham como propósito a legalização de sua intenta, contrapondo-se às cartas que Velásquez também dirigia ao rei contando sobre a rebeldia daquele capitão. Foram feitas cinco cartas (também chamadas de relações) entre 1519 e 1526, período
O texto aqui analisado foi feito em 1520, segundo data assinalada pelo próprio punho do autor, e discorre sobre três temas bem definidos. Segundo Gómez (2006, p.48)
La primera narra las incidencias de la larga marcha por el interior de México que culmina con la entrada en Tenochtitlán. En la segunda se describen con detalle la gran ciudad, sus gentes y costumbres, incluyendo todo lo relativo al servicio de Motecuhzoma. La tercera comienza con la llegada de Narváez a Veracruz, y narra su enfrentamiento con Cortés, la vuelta de éste a Tenochtitlán, la rebelión de los mexicas que consiguen expulsar a los españoles de la ciudad (
As cartas de Cortés apresentam uma dupla e clara intenção. De um lado, ele pretende demonstrar pormenorizadamente as características geográficas, econômicas e sociais de uma terra ainda desconhecida, claramente para tornar claro ao seu receptor quão rentável é a dominação daquele local. Por outro lado, tenta creditar valor a si mesmo, demonstrando sua coragem e fidelidade ao rei de Espanha, a qual é conquistada tempos mais tarde com sua nomeação para governador do México. Nota-se, ainda, uma engenhosa estrutura na Segunda Relação. Sua composição, conforme dito acima, tem na primeira parte grandes momentos de coragem e audácia que o próprio protagoniza, buscando comprovar que é digno da confiança real; segue então a descrição minuciosa a respeito dos hábitos e do ambiente local, a fim de incitar o euforismo de seu leitor. Já munido de todo esse arcabouço, ele finaliza com um fato isolado de derrota pessoal, contudo mostrado de forma a preservar seu valor e finalizado com impressionante otimismo, reforçando o potencial da terra e solicitando maiores investidas para a conquista sólida de tal espaço.
É interessante também notar que o protagonista – que é o próprio Cortés – é mostrado de forma diferente no decorrer da narrativa. Em momentos de ação, em que está em jogo a sua credibilidade como militar e político, o personagem principal é mostrado como um homem ativo, de coragem e sábias decisões. Os verbos são majoritariamente em primeira pessoa, sempre com o singular para ações de cunho político e plural em momentos de combate (principalmente na primeira e na terceira parte do texto), como se mostra nos trechos abaixo:
Yo le torné aquí a decir y replicar el gran poder de Vuestra Majestad, y [que] otros muy muchos y muy poder mayores señores que no Muteeçuma eran vasallos de Vuestra Alteza y aun que no lo tenían en pequeña merced, y que ansí lo había de ser Muteeçuma y todos los naturales destas tierras (p.163)
Y llegaran dos mensajeros llorando, diciendo que los habián atado para los matar y que ellos se habían escapado aquella noche. Y no dos tiros de piedra dellos asomó mucha cantidad de indios muy armardos y con muy grand grita (...) Y yo les comencé a facer mis requirimientos en forma con laslas lenguas que conmigo llevaba (...) y cuanto más me paraba a los amonestar y requerir con la paz tanto más priesa nos aprovechaban requerimientos ni protestaciones, comezamos a nos defender como podíamos, y ansí nos llevaron peleando hasta nos meter entre más de cient mill hombres de pelea que por todas partes no tenían cercados. (p.176)
(...) puse en ella imágenes de Nuestra Señora y de otros santos que no poco el dicho Muteeçuma y los naturales sintieron. Los cuales primero me dijeron que no lo hiciesse porque si se sabía por las comunidade3s se levantraían contra mí (...) Yo les hice entender con las lenguas cúan engañados estaban en tener su esperanza en aquellos ídolos que eran hechos por sus manos de cosas no limpias, y que habían de saber que había un solo Dios universal señor de todos, el cual había criado el cielo y la tierra y todas las cosas y que hizo a ellos y a nosotros (...) Y les dije todo lo demás que yo en este caso supe para los desviar de sus idolatrias y atraer al conoscimiento de Dios Nuestro Señor. (p.238-239)
Em outros momentos, ele demonstra um desenvolvimento mais direto, sucinto, quase técnico. Por vezes, sua narrativa mostra-se como uma espécie de relatório aos monarcas espanhóis, sendo divido em partes bem definidas por temas, tais como localização e características geográficas, organização política e comercial da cidade, hábitos do líder Montezuma e dos moradores locais, entre outros. Quando fala da cidade, o texto apresenta-se impessoal, com verbos conjugados majoritariamente na terceira pessoa, como nos trechos abaixo:
Esta grand cibdad de Temixtitán está fundada en esta laguna salada, y desde la tierra firme hasta el curepo de la dicha cibdad por cualquier parte que quisieren entrar a ella hay dos leguas. Tiene cuatro entradas todas de calzada hecha a mano tan ancha como dos lanzas jinetas. (p.233)
(...)
Hay en esta grand cibdad muchas casas muy buenas y muy grandes. Y la causa de haber tantas casas prencipales es que todos los señores de la tierra vassalls del dicho Muteeçuma tienen sus casas en la dicha cibdad y residen em ella cierto tiempo del ano, u demás desto hay en ella muchos cibdadanos ricos que tienen ansimismo muy buenas casas. (p.241)
O que se pode notar, então, é que a narrativa empreendida por Cortés denuncia um homem de ação, alguém que exercia um papel de ativo e de liderança na expedição – que se pode comprovar não só pelo aspecto técnico que sua narrativa às vezes apresenta, mas também pela presença física do autor nas histórias que ele mesmo conta.
3. APROXIMAÇÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE OS TEXTOS
Ao contrapor a teoria ao texto narrativo, é possível verificar vários pontos de aproximação entre ambos. Se para Foucault, o autor é parte integrante e indissociável da análise literária, prova-se que com Cortés não se pode agir de forma diferente. Ao contrário, personagem de um momento histórico importantíssimo para a atualidade, a contextualização deste autor é fundamental para entender as intenções e formas de sua escrita. De um lado, vemos um escritor típico das crônicas do descobrimento, que relata e descreve a terra ainda inexplorada com a preocupação de ser fiel e/ou incentivar a euforia da realeza espanhola. É um escritor de seu tempo, imerso na escolha não só do relato, mas também da auto-promoção e auto-afirmação como grande político, explorador e militar. Põe-se já aqui uma característica forte em seu texto em relação à teoria. Ora, o texto é de meados dos século XVI, um período de transição entre sistemas econômicos, identificado por diversos termos como pré-capitalismo, período de acumulação capitalista, mercantilismo, entre outros. Fato é que todos corroboram para a idéia de uma passagem histórica, embrião do que temos hoje consolidado. Se Foucault diz que só com a sociedade capitalista já concreta é que os autores assumem um lugar de beneficiário com a escrita – não mais meros homens passíveis de punição –, Cortés já demonstra que os benefícios já eram solicitados em seu tempo. A primeiro momento não voga o pecuniário, mas um valor quase subjetivo de afirmação e reconhecimento, o que, mais tarde, é recompensado com nomeações e cargos mais importantes dentro da organização do império espanhol.
Quanto ao valor, Cortés também lhes impõe recepções diversas, tanto em seu tempo quanto nos dias de hoje. Antigamente, conquistou sua posição e deu crédito as suas próximas cartas. Hoje, ainda varia entre o engenhoso escritor na visão de Gomés (1997) e o cruel conquistador e usurpador espanhol na visão de Galeano (1981). Não é inequívoco, tampouco universal, mas confirma-se como presente e indissociável.
Uma outra característica é extremamente interessante nesta análise. Há uma nítida confluência entre o escritor real (indivíduo), o locutor interno (narrador) e o autor. A construção da obra de Cortés é tão engenhosamente posta que cria e conflui estas três instâncias de uma mesma pessoa. O escritor real, capitão e conquistador espanhol, é retratado e transformado em personagem quase fictício e mitológico na narrativa, dono de um caráter elevado, de ações concretas, corretas e quase impecáveis. Além disso, é o escritor real quem colhe os louros concretos em sua época. É ele quem é promovido e reconhecido pelas bravuras daquele personagem. Já o narrador, personificação maior dessa personagem, molda-se a despeito desta intencionalidade interna contida na obra, agindo e falando de acordo com o momento narrativo. Ao fim, o autor é quem fecha este ciclo, criando o valor da obra, assumindo seus benefícios e riscos a que se poderia estar exposto legalmente.
Sendo assim, o que se pode perceber ao fim desta brevíssima reflexão, é que o conceito de Foucault é inequivocamente aplicável ao nosso tempo, porém não é uma construção de nossa sociedade. Parece, através do que fora aqui exposto, que é o resultado de um desenvolvimento histórico maior, que abrange outros períodos e momentos da própria prática escrita e narrativa ocidental. Obviamente não se faz aqui um decreto fundamental, posição consolidada nem mesmo por quem aqui escreve. Uma opinião mais contundente contaria com análises mais profundas e comparativas, buscando acompanhar este processo em outros cronistas como Bernal Díaz ou Inca Garsilaso, por exemplo. Mas, assim como o próprio Foucault diz, o que se pretende é incentivar a crítica e a reflexão, e não sufocar o pensamento entre muros intransponíveis, ainda que pouco sólidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CORTÉS, Hernan. Segunda Relación. In.: Cartas de Relación. Madri: Clásicos Castalia, 1993. (p.159-309)
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? S.L.: Passagens, 1997, p.29-71
GALEANO, Eduardo H. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. 309p.
GOMÉZ, Ángel Delgado. Introducción. In. CORTÉS. H. Cartas de Relación. Madri: Clásicos Castalia, 1993. (p.9-72)
[1] Em verdade, para a análise que se pretende neste pequeno trabalho, os esforços acadêmicos estarão concentrados mais na segunda relação. Outras relações serão apenas citadas quando uma comparação se fizer necessária.
[2] Essas partes estão contidas, respectivamente, nas seguintes páginas: de 159 a 206; de 206 a 248; e de 248 a 309.